“É preciso estar atento e forte / Não temos tempo de temer a morte”, cantava Gal Costa em 1969. Talvez seja mais fácil, de facto, dizê-lo num momento de vitalidade extrema — como foi o disco homónimo em que entrava o tema citado (Divino Maravilhoso) ou Baby. Mas alguma vez terá o medo chegado perto da “musa do desbunde”?
Maria da Graça Costa Penna Burgos, assim se encontra na cédula de nascimento, morreu aos 77 anos, a 9 de novembro de 2022. Tinha uma digressão por concluir, com datas marcadas para Porto e Lisboa, mas reagendou-a depois de uma cirurgia. Era uma das cabeças-de-cartaz do Primavera Sound São Paulo, até que outra cirurgia a obrigou ao cancelamento. O seu último álbum, um sortido de reinterpretações que batizou Nenhuma Dor, estava perto do seu segundo aniversário. Veria a sua história transposta para o grande ecrã, em 2023, no filme biográfico Meu Nome É Gal.
Gal Costa não viu o fim dos seus projetos: esse é o destino de quem optou por viver a reinvenção todos os dias, de uma voz que se atirou às cordas do ringue, que atraiu o chamego das novas gerações, em vez de se sentar na cátedra. É por isso que é difícil imaginar-lhe não só o medo, mas também uma vertigem de missão por cumprir.
Apresentava-se como Maria da Graça quando, em 1964, se juntou a Caetano Veloso, Maria Bethânia ou Gilberto Gil na intenção de renovar a música popular brasileira (a sigla, MPB, surge pouco depois). Em 1968, já plenamente Gal, integrou o elenco de Tropicália ou Panis et Circencis, disco-estandarte dessa vanguarda onde confluíam também Veloso, Gil, Tom Zé ou Os Mutantes.
Se é o álbum homónimo que a dá a conhecer ao Brasil generalista, a incursão psicadélica de Gal (1970) abre o jogo: Gal segue a sua própria batuta. Do tórrido Fa-Tal – Gal a todo vapor do ano seguinte, registo de um concerto que marca a contracultura dos anos 70, à Índia de 1973. De Modinha para Gabriela, canção que identificamos com a tal novela perfumada de cravo e canela (1975), a Água Viva de 1978 ou Gal Tropical de 1979. Bem Bom, em 1985, gera um dos seus maiores êxitos: Um Dia de Domingo, com Tim Maia.
Muitos outros discos sobram, entre aqueles que foram gravados e aqueles que podemos apenas imaginar, agora que Gal desapareceu. Muito mais haveria a dizer. Mas é preciso uma Gal para conhecer uma Gal. É por isso que, hoje, compreendemos a sua transcendência. Foi por isso que acertou no título do seu disco ao vivo de 2017: Gal Costa, Estratosférica.
Texto de Pedro João Santos