Texto: Nuno Galopim em São Paulo
Este sábado o Brasil acordou em dia de festa. Assinalavam-se mais uma passagem sobre o dia da independência (7 de setembro de 1822) e, em São Paulo, as comemorações oficiais decorreram pela manhã no Sambódromo do Anhembi. Mas a jornada oferecia aos paulistas uma bem vasta escolha possível de destinos para passar um dia de feriado que prometia (e cumpriu) calor na ordem dos 30 graus. O Museu do Ipiranga propunha uma vasta programação dentro do edifício e nos jardins à sua frente (ou seja, no local do célebre “grito” que, todavia, não corresponderá exatamente à mitificação do momento pelo quadro de Pedro Américo que vemos exposto no salão principal desse mesmo belo palácio de paredes amarelas). A cidade acolhia ainda a Bienal do Livro e um concerto de The Weeknd… Mas o certo é que o Memorial da América Latina, onde decorre a décima edição do Coala Festival, não pareceu incomodado pela concorrência. E, ao fim da tarde, quando Sandra de Sá pegou no microfone para mobilizar a multidão, gritando “o Brasil é f***”, a “casa” já estava bem cheia, ficando ainda mais composta, logo depois, para ouvir Lulu Santos e os Paralamas do Sucesso, estes, apesar de verem o mítico vocalista Herbert Viana a cantar e tocar numa cadeira de rodas (sequelas de um acidente com um ultraleve em 2001), a mobilizar as energias de toda a gente, evocando clássicos de Tim Maia ou Gilberto Gil e canções do seu vasto percurso como “Vital e Sua Moto”, “Cinema Mudo”, a “Lanterna dos Afogados” ou o “Melô do Marinheiro”: “Entrei de gaiato num navio/Entrei, entrei, entrei pelo cano/Entrei de gaiato num navio/Entrei, entrei, entrei por engano”… Canta assim a canção, mas ali ninguém entrara por engano e, se o coro da geral era intenso, o recinto inteiro, agora que a noite caíra e o calor fazia tréguas, dançava e dançava.
Tal como no primeiro dia, a programação mostrou uma vontade em não só revistar várias épocas e espaços da história da música popular brasileira como também em criar momentos únicos, inéditos, através de parcerias, algumas delas inesperadas. Hyldon, guitarrista, produtor e cantor que recentemente começou a merecer um mais justo reconhecimento por um longo trabalho na música, surgiu em palco dividindo o alinhamento com a jovem Tássia Reis (que revelou temas de um álbum que edita esta semana) e a veterana Sandra de Sá, figura de referência da soul local e autora do célebre “Música Preta Brasileira” (álbum editado em 2003). “O palco tem essa magia. Você pode ensaiar, mas chega na hora e acontecem coisas que não têm explicação.”, descreve, depois da atuação, Hyldon à Antena 1: “A gente nunca tocou juntos. Podia não rolar uma química, mas rolou! A Sandra tinha outras coisas para fazer mas chegou em cima da hora. Não tivemos nem ensaio. E por isso agradeço a ela por ter confiado em mim, porque fui eu que organizei a setlist”. Hyldon, que uma vez se apresentou em Portugal ao lado dos Ovelha Negra, explica que ficou espantado pelo facto de o público conhecer o seu repertório. “Conheciam as músicas, cantavam”…
Antes do trio Hyldon, Tássia e Sandra, uma dupla tomara o mesmo espaço, desta vez juntando Tulipa Ruiz, uma força maior da música independente paulista com o já aclamado Criolo, voz nascida no rap e que ao longo dos anos fez pontes com outras músicas e colaborou com gigantes da MPB, de Caetano Veloso e Gal Costa a Ney Matogrosso ou Milton Nascimento, com este último tendo criado a canção “Não Existe Amor em SP”. Mas naquela tarde o momento parecia contrariar esta ideia de desamor em São Paulo. Juntos cantaram Gal Costa (“Hotel das Estrelas”), Cazuza (“Codinome Beija Flor”) ou João Donato (“Emoriô”), cabendo contudo a Tulipa Ruiz a outra metade de um alinhamento que passou por vários dos seus discos pelos quais passam marcas de um código genético abençoado, ou não fosse filha do jornalista e guitarrista Luiz Chagas e irmã de Gustavo Ruiz, produtor de “Caju”, o belo novíssimo álbum de Liniker. “Eu tenho a sorte de ter uma árvore muito frondosa”, disse, depois da atuação, em palavras para a Antena 1 (que brevemente poderemos escutar num especial a apresentar na rádio). E continuou: “A minha família é muito musical e então eu celebro isso. O meu pai, que fez a passagem esse ano, deixou-nos há dois meses mas está aqui com a gente, era guitarrista, tocava connosco. Tocou com o Itamar Assunção a vida inteira. E também era jornalista. Então eu cresci a ler sobre música e escutando música. O meu irmão é também um dos maiores produtores do Brasil. Acabou de fazer um disco maravilhoso com a Liniker. É também produtor dos meus discos. E eu aprendi com eles a fazer a música de que eu gosto”. Sobre a relação com Portugal, Tulipa Ruiz diz que “essa coisa da língua nos une demais. Hoje, com muitos músicos brasileiros morando em Portugal, abrem-se muitas portas. Quando estou em Portugal sinto que o público português é muito interessado na gente, pela nossa curadoria de palavras. Da língua portuguesa. Portugal é onde dou as minhas melhores entrevistas, inclusive”, afirmou.
O início da tarde, sob tórrido calor, fez-se ao som de Bebé, ou seja, a nova vida como cantora e autrora de Bebé Salvego, voz que iniciou o seu caminho no jazz e que agora procura novos desafios. “Para mim, fazer essa transição do jazz, que faço desde pequena, para a música autoral, é realmente muito divertido. É também corajoso explorar, porque o jazz é uma linguagem. E tudo o que estou fazendo também é jazz. A composição vem através da improvisação”, explica à Antena 1. Bebé, que já atuou em Portugal, acha “incrível” a nova ligação do festival ao outro lado do Atlântico: “Há essa consciência global, que é muito importante. Eu admiro cada curadoria. E do Coala em Cascais, mesmo não estando presente, sei que a curadoria é muito fiel e eu vou estar sempre atenta”.
Ainda a abrir a tarde esteve em palco Dada Joãozinho, nome de palco de João Rocha, que ali levou mais um exemplo da vibrante cena independente, despertando atenções para o ainda recente “Tds Bem Global”, disco de 2023 que cruza linguagens, desafia nomenclaturas, traduzindo afinal os interesses, estímulos e percurso de vida de um artista natural de Niteroi agora radicado em São Paulo.
Nota menos feliz apenas para o acidente que envolveu o maestro Arthur Verocai, lenda viva da bossa nova e da MPB, colaborador de nomes como Jorge Ben Jor, Ivan Lins, Erasmo Carlos ou Marcos Valle. Uma queda antes da sua atuação no Palco Tim obrigou ao cancelamento da sua atuação.