Esta prosa tem muitos motivos para mostrar a proa. Na página 10 do jornal Público, o cidadon mirandés Aníbal Fernandes escreve como se vestisse a capa de honras, confrontando-nos com a maioria de razões de uma língua minoritária que nem o foral de D. João III conseguiu varrer para fora das muralhas de Miranda, por mais clandestina. Lendo a prosa de Anibal Fernandes, inteiramente sustentada na lhéngua mirandesa, escutamos argumentos fortes, mas também flautas pastoris e caixas de guerra. Qual lhéngua charra, qual quê. Esta é a língua fidalga para a qual Amadeu Ferreira traduziu os Lusíadas e a Mensagem do Pessoa, mais os quatro evangelhos do Novo Testamento, mesmo se a Igreja de antanho agitou contra ela turíbulos de excomunhão. Esta prosa é uma saborosa posta mirandesa, tão suculenta como aquela que levou certa vez Saramago a procurar a Gabriela de Sendim. Leio a prosa de Aníbal Fernandes e escuto a voz de ti Lérias, mostrando o seu guitarro a Giacometti. Certa vez, conheci em Sendim um sobrinho de Ti Lérias e guardei até hoje o modo como ele saudou, na variação sendinesa, para o meu gravador, um vizinho que passava: Então, maçaroco?
Esta prosa de Aníbal Fernandes hoje no Público traz-me à lembrança um outro 17 de setembro em que desafiei o saudoso Amadeu Ferreira a que se apresentasse na rádio onde me cabia editar os noticiários da manhã. E o fundador e presidente da Associação da Língua e Cultura Mirandesa e da Academia de Letras de Trás-os-Montes apresentou-se às 5 da manhã na rádio, participou na reunião editorial, traduziu os títulos das notícias para mirandês e espalhou ao vento as ideias fortes do dia, com a sonoridade maravilhosa da sua língua fidalga. É inesquecível a alegria contagiante que Amadeu Ferreira entregou a essa missão.
O notável jurista que era, ao tempo, vice-presidente da Comissão do Mercado de Valores Imobiliários parecia a brincar num estúdio de rádio com o Menino Jesus da Cartolinha. Mas o brilho nos olhos revelava, também, um labor poético que felizmente deu frutos, sob o pseudónimo Francisco Niebro.
Neste dia da Língua Mirandesa, é importante sublinhar que há medidas aprovadas ou anunciadas em defesa da língua mirandesa, mas cuja execução tem vindo a ser adiada. Não se sabe muito bem em que gaveta repousa a Carta Europeia das Línguas Minoritárias aprovada há 3 anos. Nem é razoável que verbas aprovadas no Orçamento de 2023 não tenham sido usadas em prol da língua mirandesa.
Este fim de semana, conversei com Aníbal Fernandes. Ele contou-me, com orgulho, que 80% dos alunos da secundária do seu concelho se inscreveram voluntariamente nas aulas de mirandês, sem terem disso qualquer vantagem curricular. Isso nos diz que por vezes lérias adubam sopas.
Este fim de semana, Aníbal Fernandes disse-me algo que não esquecerei: “Quando oiço uma gaita de foles fico com piel de pita”. Eu percebi que ele usava, ao modo da sua terra, a expressão pele de galinha.
Por causa desta prosa, bela e comovente, não darei o dia por terminado sem escutar os Galandum Galundaina.
Texto e rubrica de Fernando Alves
Todas as manhãs, de segunda a sexta-feira e minutos antes das 9h, “Os Dias que Correm”: o que guardamos dos dias; o que passando, fica.