Data de Edição: 01 MARÇO de 2010
O Fado nasceu um dia,
Em que o vento mal bulia
E o céu o mar prolongava,
Na amurada dum veleiro,
No peito dum marinheiro,
Que estando triste cantava
José Régio
"A ideia desta
colectânea nasceu à roda de um ensopado de borrego, ali para os lados do
Chiado, em Lisboa. Já perto do final do repasto, a conversa empastou no fado.
Do borrego ao convite para tratar de outras iguarias, foi um passo. E lá fui eu
mergulhar no Mar da Poeira de um
andar num prédio de uma rua de Benfica, espreitar se ainda por lá existiam os
muitos milhares de discos que eu sabia ali terem estado. É que eu conhecera
esse local no ano de 2004, quando preparava a edição de uma colecção de discos
de fados, editada no ano seguinte pela Revista Visão, com o título Todos os
Fados. Voltei àquele lugar mágico no ano de 2006 e comecei a preparação de
um projecto que não chegou a realizar-se e que tinha por objectivo a reedição
de todo o trabalho discográfico do guitarrista Raul Nery, com a possibilidade
de lhe acrescentar um ou dois registos originais, beneficiando para tal dos
três elementos que estão vivos e que integraram esse notável grupo de músicos –
o Conjunto de Guitarras de Raul Nery.
As pérolas preciosas
que existem naquele arquivo permitem todos os sonhos e projectos de edição. O
profundo respeito que tenho pelas nossas memórias encontra, naquele espaço,
muitas das respostas que não foram ainda dadas. Foi precisamente durante essa
visita que me cruzei com um armário enorme onde se lia: Fernanda Maria. Eu tinha na minha frente o universo discográfico
daquela que é muito justamente considerada O
Grande Nome do Fado. A reacção foi imediata: Isto não pode ficar aqui a dormir, à espera não se sabe bem de quê.
Acordar da letargia em que estavam todos aqueles discos, trabalhá-los,
seleccioná-los e finalmente editá-los, foi obra
de quase um instante. E foi assim que voltaram à luz do dia, tratados com o
rigor indispensável nestas coisas, 30 títulos publicados no CD MOV 30 577, no
ano de 2006.
No mês de Junho de
2008, terminado o tal repasto, entrei com armas e bagagens no já citado prédio
e comecei a olhar para os mais de 7 294 discos que ali esperavam, já
impacientes, que alguém lhes fosse fazer companhia! Foi o que fiz!!! Primeiro,
seleccionar o que era Fado. Depois, excluir, por decisão minha, todas as
gravações que não fossem acompanhadas pelos instrumentos tradicionais do Fado,
ou seja, a guitarra e a viola. Foi trabalhoso, mas não tão difícil como se
poderia pensar. O que eu queria, para esta colecção, tinha de ficar fechado no
(será restrito?) universo do acústico tradicional. Foi uma opção, podia ter
havido outras.
Comecei por ordenar,
por ordem alfabética, os intérpretes. Depois, foi ouvir as centenas de discos a
precisarem de ser ouvidos. Finalmente, a escolha dos temas, procurando a maior
diversidade entre eles, já que me deparei com os mesmos fados cantados por
diversos intérpretes, o que poderia ser monótono.
Esta colecção começa
da melhor maneira, com um imbróglio daqueles à antiga portuguesa. A capa
original do disco que abre esta colecção refere, na contracapa, o seguinte: Rosa Caída, letra de José Guimarães e
música de Joaquim Campos. O autor da letra está errado. O título corresponde efectivamente
a um poema de José Guimarães mas o que acontece é que, após leitura do texto
original deste poeta, que consultei na Sociedade Portuguesa de Autores, este
não correspondia ao texto que Ada de Castro cantava. Pedi então para ver os
manuscritos entregues naquela Sociedade, onde as palavras Rosa e Caída apareciam,
afim de poder chegar a conclusões. Encontrei então um outro texto, com o título
A Rosa, da autoria de Joaquim da
Silva Borges, poeta nortenho acerca do qual nada consegui saber pois, na SPA,
não existem dados sobre este autor. Era este justamente o poema que eu
procurava! Não se podia começar melhor: um autor errado desde a data da sua
primeira publicação em 1961; um título errado, há 48 anos, e uma quantidade de
versões cantadas pelas mais diversas intérpretes, com repetição de todos estes
erros.
Situações com erros
semelhantes apareceram também na área dos autores das músicas. Foram
corrigidos, na medida das escassas informações que me foram sendo fornecidas. É
o resultado de todo esse trabalho que hoje se apresenta a julgamento. Para
realizar esta tarefa foram fundamentais as colaborações de muitas pessoas.
Começaria pelos funcionários desta editora, incansáveis no constante apoio a
todas as minhas solicitações.
O segundo
agradecimento vai para o apoio dado por várias instituições, sem o qual tudo
isto teria sido muito mais dramático. Refiro-me à Sociedade Portuguesa de
Autores; ao departamento de Referencias desse mundo de saberes e memórias que é
o Arquivo da Torre do Tombo; à colaboração sempre generosa e pronta dos
serviços da Biblioteca Nacional; e aos muitos funcionários e funcionárias das
mais diversas Conservatórias do Registo Civil de Lisboa e de outras localidades
do País, pelo carinho com que receberam os meus pedidos de cedência de
documentos, os quais permitiram evitar muitos erros de nomes e de datas, tão
frequentes em tantos trabalhos publicados nesta área do fado.
Recorri com muita
frequência aos novos meios tecnológicos que estão hoje à disposição de quem os
quer utilizar. A Internet é um mundo de incontroláveis saberes, tantas vezes
produzidos por gente pouco escrupulosa. Encontrei coisas muito interessantes
mas também encontrei muita asneira, muita mentira, muita ignorância e,
sobretudo, muita vigarice. Dou, como exemplo, alguns textos que escrevi em
1992, 1994, 1997, 1998, 2001, 2005 e 2006, e que hoje aparecem copiados, com os
pontos e as vírgulas que eu lá pus e assinados por baixo com os diversos nomes
das pessoas que cometeram estas vigarices. Sim, porque é de vigarice que se
trata. Até alguns erros que então cometi foram repetidos, porque é mais fácil
viver à custa do trabalho dos outros do que procurar saber das verdades e das
mentiras por esforço e mérito próprios. Um erro repetido transforma-se em
verdade em menos de um ápice. E esse mundo fantástico que é a Internet está
cheio deles. Espero que estas palavras possam significar algum aviso à
navegação, no sentido de haver mais respeito pelo trabalho dos outros. Não sei.
Enquanto as leis deste e de outros países se não debruçarem energicamente sobre
esta obscena forma de estar na vida, não se irá a lado nenhum. É uma questão de
honestidade. Já Eugen Berthold Friederich Brecht dizia: Copiar, pode ser uma arte. O que é preciso é saber copiar.
Os ouvintes e os
leitores mais atentos verificarão que há algumas discrepâncias entre o conteúdo
dos textos das letras que se publicam e os versos que alguns intérpretes
cantam. A justificação é simples. Como tive acesso a todos (ou quase todos) os
originais depositados na SPA, optei pela publicação dos referidos originais
sempre que as mudanças introduzidas pelos intérpretes eram, além de
incompreensíveis, um tremendo disparate. Muitas dessas mudanças foram feitas
pelos próprios intérpretes pelas mais diversas razões. Quase sempre sem o
conhecimento ou o consentimento dos autores. Uma palavra que não dava jeito
cantar, uma frase menos do agrado do intérprete – eis alguns dos motivos que os
guiaram nestas reprováveis modificações. Amália fez muitas vezes isto. Só que
nunca se esqueceu de perguntar aos autores o que estes achavam. Ficou célebre a
história de um texto de Pedro Homem de Melo, no qual havia uma palavra que não
era do agrado de Amália. Perguntou então ao Poeta se podia mudá-la, ao que este
respondeu: Tudo o que a Amália mudar,
será sempre para melhor. Eu próprio assisti, em casa da grande Senhora do
Fado, à feitura de poemas de José Carlos Ary dos Santos, onde Amália
interrompia as leituras sempre que achava necessário. E nem mesmo o difícil
feitio desse grande poeta sofria a mínima beliscadura por estas correcções. Mas
enfim: Amália foi Amália. A outra fonte de consulta foram os livros publicados
na época pelos respectivos autores e que continham os poemas de que eu
precisava.
É da mais elementar
justiça realçar, neste texto de introdução, o trabalho de José António Regada
que, com uma paciência e um saber dignos de grande aplauso, reconstruiu,
algumas vezes compasso a compasso, as passagens mais danificadas das gravações
originais. Todo este trabalho foi feito tentando respeitar sempre o ambiente
sonoro tão característico do Vinil. Guardei para o final deste texto o mais
importante de todos os agradecimentos: pela riqueza, rigor e contínuo
entusiasmo do Nuno de Siqueira, a quem devo o permanente conselho e a revisão
técnica e literária de todo o projecto, um abraço de gratidão e amizade deste coca-bichinhos do Fado.
E agora, se não se
importam, com a sábia loucura dos sonhos,
Vamos aos Fados."
José Manuel Osório,
Janeiro de 2010.
A ETIQUETA
ALVORADA
"A etiqueta Alvorada, propriedade da empresa
portuense Rádio Triunfo, Lda., existia já na primeira metade dos anos 50.
Inicialmente conhecida por Melodia,
viu-se forçada a mudar o nome por já existir na Europa um rótulo discográfico
com o mesmo nome. Durante vários anos o logótipo foi mudando de cores tendo
mantido sempre o mesmo aspecto gráfico.
As primeiras edições
Alvorada terão provavelmente atingido quantidades pouco significativas.
Tiragens de pouco mais de 1500 a 2000 discos foram construindo com passos
seguros aquela que é, provavelmente, a mais significativa etiqueta de discos em
Portugal.
Foi no ano de 1957
que a Alvorada publicou o seu primeiro disco de 45 rotações por minuto (rpm).
Com a referência MEP 60 001, sai nesse ano um disco de Amália Rodrigues onde
canta: Lá Porque Tens Cinco Pedras,
com música de João Bernabé de Noronha e letra de João Linhares Barbosa, Fado Alfacinha, com música do
guitarrista Jaime Tiago dos Santos e letra de António Feijó, A Minha Canção é Saudade, com música de
Joaquim Frederico de Brito e letra de Vaz Fernandes e ainda Quando os Outros te Batem, Beijo-te Eu,
com música de Armando Machado e letra de Pedro Homem de Melo. Como nota de
curiosidade, aqui fica a informação da edição desta mesma faixa na etiqueta
Melodia, no ano de 1952, num disco de 78 rpm, com a referência 37.009. O
segundo, com a referência MEP 60 002, editado igualmente no ano de 1957, é também um disco de Amália Rodrigues.
Amália canta neste disco os seguintes temas: Cabeça de Vento, Disse Mal de Ti, Tentação e Avé Maria Fadista. Nesse mesmo ano são editados com as referências
MEP 60 003 e MEP 60 004, mais dois discos da etiqueta Alvorada. Estes dois
discos têm o mesmo título: Fados de
Coimbra. Segue-se um quinto disco de Maria Amélia Canossa, com a referência
MEP 60 005.
Parece-me lícito
concluír que o primeiro ano de existência da Alvorada foi um ano de uma enorme
riqueza.
Esta colecção
mostra-nos 20 anos de gravações sonoras realizadas pela etiqueta Alvorada. Um
catálogo invejável, para o qual gravaram, para além dos 54 nomes que se
apresentam nesta colecção, artistas como: Adelaide
Moura, Adelaide Ribeiro, Agostinho Estrela, Aguiar dos Santos, Aida
Baptista, Alberto Ribeiro, Alice
Amaro, Alice Maria, Álvaro Martins, Anita Guerreiro, António Bernardino,
António Calvário, Artur Paredes, Artur Ribeiro, Augusta Ermida, Cândida Ramos,
Carlos Paredes, Carlos Zel, Cidaliza do Carmo, Esmeralda Amoedo, Estela Alves,
Eugénia Lima, Germano Rocha, Grupo Coral de Cantares Regionais de Portel,
Helena Tavares, João Mouro, João Villaret, Jorge Ferreira, José Afonso, José
Nunes, José Pracana, Julieta Brigue, Júlio de Sousa, Lenita Gentil, Lídia
Ribeiro, Luís Braga, Luís Goes, Luís
Piçarra, Madalena Iglésias, Manuel Dias, Manuel Fernandes, Manuela Novais,
Márcia Condessa, Marcírio Ferreira, Maria Clara, Maria da Conceição, Maria de
Lurdes Machado, Maria de Lurdes Resende, Maria do Espírito Santo, Maria
Marques, Maria Pereira, Maria Rosa
Rodrigues, Maria Silvestre, Mário Rocha, Miguel Silva, Moniz Trindade,
Natália dos Anjos, Natalina Bizarro, Natalino Duarte, Natércia da
Conceição, Natércia Maria, Raul Dias,
Rodrigo, Saudade dos Santos, Sérgio,
Teresinha Alves, Tereza Siqueira, Tereza
Tarouca, Tónia, Valdemar Vigário,
Valentina Félix, Vasco Rafael, Zélia Lopes e Zurita de Oliveira entre
muitos outros."
José Manuel Osório
A EMPRESA RÁDIO
TRIUNFO, LDA.,
HISTÓRIA DE UMA
AVENTURA
Fundada
por Rogério de Seixas Costa Leal, José Cândido Varzim da Cunha e Silva e Manuel
Lopes da Cruz, foi constituída no dia 23 de Março de 1946, no Porto, a empresa
Rádio Triunfo, Lda., tendo como objectivo único a produção industrial de discos
em Portugal. Em 1947, é inaugurada a Fábrica
Portuguesa de Discos, que virá a ser a primeira fábrica do género em
Portugal. Aí começou o fabrico de discos, ainda numa matéria quebradiça, e com
limitações quanto à duração do tempo das gravações.
Graças
a esta corajosa e inovadora atitude de construir em Portugal uma fábrica de
discos, foi aqui fabricado um significativo número de unidades que até aí
tinham de ser importadas. No início da sua actividade, a fábrica da Rádio
Triunfo apenas prensava discos de 78 rpm, utilizando estampadores em cobre
feitos nos mercados internacionais, utilizando fitas magnéticas gravadas nos
estúdios da Emissora Nacional. São
inúmeros os exemplos desta colecção gravados no Estúdio A da referida estação
de rádio. Recentemente, esteve patente no Museu do Fado, em Lisboa, uma
reconstituição deste estúdio. No ano de 1955, a Rádio Triunfo, Lda., abre o
primeiro estabelecimento comercial, na Rua de Santa Catarina, em pleno centro
da cidade do Porto.
Seis
anos mais tarde, a mesma empresa abre o seu segundo estabelecimento, desta vez
na Rua de Santo António, também na Cidade Invicta. Lisboa teria de esperar mais
um ano para ver nascer, na Rua do Carmo, ao Chiado uma delegação da
Empresa-Mãe, com armazém e loja de venda ao público. O ano de 1957 marca uma
data importante na história da empresa. É neste ano que se inicia o corte dos
acetatos e a produção das matrizes de cobre em Portugal. Em 1969, é gravado o
primeiro disco em estéreo, graças a um moderno equipamento topo de gama,
adquirido na Suécia.
Em
1970, é criada uma secção dentro do grupo, cuja finalidade é a duplicação de
cassetes e cartuchos, suportes sonoros muito em voga na época. Ao longo dos
seus 31 anos de existência, a Rádio Triunfo, Lda. ultrapassou o estreito âmbito
do mercado nacional, lançando-se na conquista de novos mercados e mantendo
durante largos anos um papel de liderança na indústria discográfica portuguesa.
No dia 15 de Fevereiro de 1974, a Rádio Triunfo abre, na Estrada da Luz, nº 26
B, em Lisboa, aquele que seria o mais completo e bem apetrechado estúdio de
gravação existente em Portugal.
Na segunda metade da década de 80, a
Rádio Triunfo foi, seguramente, a mais importante companhia discográfica
portuguesa, com uma enorme produção, um vastíssimo catálogo e representante de
inúmeras etiquetas, quer nacionais, quer internacionais.
Texto de José Manuel Osório adaptado do livro A Grande
Aventura da Gravação, livro elaborado a propósito da comemoração dos 100 anos
de Gravação Sonora e realizado por uma equipa de trabalho da Rádio Triunfo,
Lda. sob a coordenação de J. A. T. Lourenço da Silva e editado pela referida
empresa, em Julho de 1977. Composto e impresso nas oficinas de Gráficos
Reunidos, Lda. Um abraço de gratidão a Joaquim Alves de Sousa por ter
conservado este documento, permitindo-nos hoje saber das coisas de ontem.