Há tempos, o treinador de futebol Abel Ferreira disse aos jornalistas: “Sei que todos vocês gostariam de estar aqui sentados, mas têm de ir estudar”.
Abel referia-se à cadeira de sonho, como a designou André Vilas Boas, e que, por acaso, é um banco, para o qual a tribo acena, em noites aziagas, coléricos lenços brancos. Os treinadores mais emotivos, passam o tempo de jogo gesticulando na linha, por vezes agacham-se para verem mais longe e, quem sabe, mais alto. Mas, como há dias se lamentou Luis Enrique, o ofício obriga a que passem muitas horas sentados.
O novo treinador do Sporting está impedido, pelo menos até janeiro, de estar de pé, no banco. Nada que não tenha acontecido com o seu antecessor, agora sentado no Olimpo do futebol. A Associação de Treinadores de Futebol parece disposta a não dar tréguas a João Pereira porque este “não tem a certificação exigida para o desempenho das suas funções”. A falta de certificação não impede o acesso do treinador ao banco, mas obriga a que fique, durante todo o jogo, sentado.
A ergonomia sugere especiais cuidados ao trabalhador sentado. O futebol talvez não se compadeça com a chamada síndrome do rabo morto.
Os treinadores de bancada desenham estratégias em profundidade com os cotovelos bem apoiados nos braços da cadeira. Sérgio Conceição pegou na deixa, no último janeiro, quando disse: “Sentado no estúdio, a comentar, depois do jogo, sou o melhor treinador do mundo”. E há uns anos, em vésperas do jogo mil de uma carreira sempre especial, José Mourinho lembrou o primeiro jogo no Benfica: “Ainda não me tinha sentado e já estava a perder”.
João Pereira há-de soltar vigorosas gargalhadas quando, transposto o quarto nível, se pronunciar sobre este desconforto num banco de sonho.
Certa vez, Mia Couto colocou nas redes sociais uma passagem de “Estórias abensonhadas”: “Estou sentado junto da janela olhando a chuva que cai a três dias. Que saudade me fazia o molhado tintinar do chuvisco. A terra perfumegante semelha a mulher em véspera de carícia. Há quantos anos não chovia assim? De tanto durar, a seca foi emudecendo nossa miséria. O céu olhava o sucessivo falecimento da terra, e em espelho, se via morrer. A gente se indaguava: será que ainda podemos recomeçar, será que a alegria ainda tem cabimento?”.
Logo um frequentador da rede, talvez em nome de um hipotético – Mia diria um hipatético – sindicato de leitores guardiões de um cânone perdido, se pôs em bicos de pés literários e sentenciou: “Pena que este excerto tenha dois erros de português, imperdoáveis”. Outro frequentador mais atento às fintas desconcertantes que a língua acolhe observou: “Quem muito se preocupa com erros ortográficos, pouco se deixa tocar pelo sentimento”.
Permito-me puxar este passe em profundidade para o tema inicial: quem viu jogar Garrinchas e Chalanas tem dificuldade em aceitar que se apliquem ao futebol critérios indispensáveis no acesso a práticas como a da medicina, a da aplicação da justiça ou a da aeronáutica.
Os que amam o futebol esperam que João Pereira possa responder com vibrantes goleadas ao rígido critério de burocratas que mais deveriam preocupar-se com a banalização das chicotadas psicológicas. Mas, até lá, o jovem treinador terá de esperar sentado.