Num outro 25 de novembro, há cem anos, o grande repórter Norberto Lopes está a bordo do navio Gil Eanes de onde despacha para o Diário de Lisboa uma deliciosa trama de convés. O mote da reportagem de primeira página do jornal que Norberto Lopes há-de dirigir nas décadas de 50 e 60 é dado por um dos “criados de câmara”, assim descrito: “rapaz novo, quase imberbe, de pequenos olhos castanhos, nariz ligeiramente arrebitado e o cabelo muito liso a cair sobre a testa em desalinho”. Está apresentado o Ginja, a quem o despenseiro Eduardo atribui, invariavelmente, as falhas no serviço. O repórter está na pujança dos seus 24 anos, longe ainda de se aventurar pelo perfil de Manuel Teixeira Gomes ou pelos imprescindíveis diálogos com o capitão Sarmento Pimentel.
Norberto Lopes chama-nos para o convés do Gil Eanes, apresenta-nos o Ginja, o criado de câmara, o “menino mimado” da tripulação e, sem mais delongas, faz a revelação que justifica a primeira página: o jovem criado de câmara é, afinal, bisneto de Alexandre Dumas, o celebrado autor de “A Dama das Camélias”. O menino mimado nasceu Júlio Brousse Dumas Ginja, filho de António Brousse Dumas, um engenheiro pela Escola de Paris, emigrado para Portugal e que aqui se envolveu na construção da linha da Beira Baixa. O avô de Ginja caiu de amores por uma donzela de Vila Velha de Rodão quando Rodão ainda se escrevia com “am” em vez do ditongo nasal “ão”, um dos três filhos desse amor ali estava no convés de um navio Gil Eanes que, desfaça-se eventual equívoco, não era o navio-hospital da saga bacalhoeira, mas um outro, anterior, utilizado como navio de transporte de carvão, integrado numa Divisão Naval Colonial, criada nesse mesmo ano de 1924, um mês antes do início do périplo africano que o jovem repórter há-de cumprir ao longo de mais de meio ano sobre as águas.
Vasculhando entre marés de sorte, acabo de encontrar o decreto 10.040 do Ministério da Marinha que cria tal Divisão, constituida por dois cruzadores “tipo República”, três canhoneiras “tipo Beira” e o navio de transporte Gil Eanes a bordo do qual um jovem repórter nascido para a glória do jornalismo acaba de conhecer um bisneto de Alexandre Dumas.
Não resisto a ler-vos o primeiro parágrafo do decreto ministerial de há cem anos: “É da maior necessidade imprimir constante actividade ao pessoal da Armada no exercício das suas funções profissionais e militares, quer com o fim de garantir a eficiência das nossas forças navais, quer também pelo lado moral, evitando a ociosidade e a longa permanência das guarnições dos navios armados no porto de Lisboa, sujeitas a todas as influências deprimentes e dissolventes que sempre existem nos grandes meios sociais”.
Não é este parágrafo que explica a alegada costela mimalha de um bisneto de Alexandre Dumas. O jovem criado de câmara de um navio português de transporte de carvão era também descendente de um general que acompanhou Napoleão nas campanhas do Egipto. Não trata desse capítulo, o da bravura militar, esta nota breve sobre uma primeira crónica de viagem do jovem repórter Norberto Lopes num 25 de novembro de há cem anos. A viagem será longa e lá para Junho de 1925, o Gil Eanes fará escala em Tânger e então conheceremos a figura impressionante do sargento Pombeiro cinzelada pela arte de um repórter que não enjoava em mar agitado.”