Há quem passe horas limpando os cromados. Quem saiba de cor a nomenclatura de cada novo modelo automóvel surgido no mercado. Quem perca a cabeça por um arranhão no para-lamas. Quem cabriole pelo cabriolé imaculado. Quem comprometa o bife por um suv topo de gama.
Nunca sonhei com Maseratis, não me mercedes-benzo por um tesla, assim me livre da ferrugem e das cruzes na carroçaria dos ossos, que a idade não perdoa. Tenho que um carro é um burro com rodas. Vá lá, um garrano, um alazão. Acolho estas alternativas tendo em conta, apenas, a beleza das palavras; na conversa que trago na carroça, burro é carro com muitos cavalos.
Quando automobilizo os pensamentos, faço pisca, estaciono na berma e até pode acontecer que me comova. Basta que me ocorram os versos de Drummond evocando o primeiro automóvel da sua Itabira, o automóvel de Chico Osório, “estranheza preto-lustrosa”.
Basta que me lembre de uma história que me contaram há muitos anos em Castro Verde, a história do primeiro automóvel surgido na vila. O proprietário, Chico Papo de Homem, lavrador abastado a quem os dias enevoaram de estranheza os pensamentos, não chegou a tirar carta de condução e a viatura foi ficando longos anos imóvel, sustida em dois grossos troncos de árvore, enquanto as ervas lhe subiam pelos pneus e os invernos lhe corroíam o verniz original. Chico Papo de Homem tinha um motorista, também já muito entrado na idade, com o qual se sentava na viatura, viajando imaginariamente em silêncio, na imponência imóvel de uma carroçaria sustida em troncos de árvore. Depois, contavam, na taberna: “Hoje fomos até à serra do Caldeirão, apanhámos um nevoeiro cerrado que metia medo”.
Sim, como condescendia o Caeiro, “para além da curva da estrada / talvez haja um poço, e talvez um castelo”.
Acabo de o confirmar, virando a página electrónica do jornal Sur, de Málaga, na ressaca de uma depressão que espalhou a morte e o caos na região de Valência. O que me prendeu a atenção: a onda de solidariedade criada em torno da iniciativa Solidariedad Sobre Ruedas, que envolve figuras como Carlos Sainz e Fernando Alonso. Esta estrutura ajuda a ultrapassar burocracias e agiliza a concretização de centenas de gestos generosos de famílias espanholas. Até ontem, 469 famílias tinham oferecido um automóvel a outras cuja viatura se perdera na enxurrada. A entrega de 103 desses automóveis tinha já cumprido os trâmites legais.
O jornal Sur contava ontem o caso de Lídia Perez e Florencio Arias, moradores em El Perchel, que não hesitaram em oferecer uma das suas duas viaturas a quem ficara apeado na tormenta.
Não tarda, sentirei um desconforto que talvez me conduza ao impropério porque um tipo qualquer há-de afirmar o seu efémero poder de pneus de barro numa tangente ao meu garrano com rodas.
A estrada não é, nestes dias de individualismo celerado e acelerado, o lugar mais convivial. Mas há notícias, como esta que encontro num jornal de Málaga, que abrem uma via verde de humanidade.
Dou comigo comovido, encosto à berma e puxo o travão de mão.