Tem cuidado quando folheares este álbum “Romeiros da Fraternidade”, do grande fotógrafo Jorge Barros, andarilho de todas as ilhas, e de seu filho Pedro Barros, arqueólogo de um chão submerso, que Onésimo Teotónio de Almeida apresenta logo à tarde no Teatro Micaelense, em Ponta Delgada. Jorge é um homem antigo de corpo frágil, tem somado quaresmas e vias sacras, o médico insistiu em que não viajasse, seu filho Pedro escavará memórias comuns da duríssima caminhada, oito dias no sentido do relógio, da alvorada até ao último fio de luz de cada dia. Nesta viagem, página a página, à volta de um álbum, à volta de uma ilha, podem abater-se sobre ti bátegas de chuva e de vento, ou podes entrar desprevenidamente no mais espesso nevoeiro. A bruma não é, aqui não é, seguramente, uma figura de estilo.
Vai com eles, dando a volta ao livro, dando a volta à ilha, leitor romeiro. Como se rezasses e cantasses ave marias com estes homens de xaile ao ombro, enquanto no mais fundo do teu peito ressoa uma primitiva viola da terra. Não esperes que alguém responda, nem o sábio Onésimo, à pergunta de Antero logo no início da caminhada: “Aonde ides? Qual é a vossa jornada? À luz? À aurora? À imensidade? Aonde?”
O ilhéu Onésimo partiu adolescente para longínquas américas e guardou das romagens da Quaresma da sua infância, como ele próprio recorda no prefácio do álbum, “uma impressão de quase medo”. A memória desses dias quase o levou a recusar o desafio de Jorge Barros. Ele partilha esse sentimento ambíguo de um modo tocante: “A minha ilha triste em Março, os homens de xaile, bordão, lenço e terço, descalços, sobre o chão molhado arrochavam-me o coração. A minha alegria congénita nada tinha a ver com aquela tristeza dolente a rondar o funéreo”.
As romarias de hoje, ao contrário das da sua infância, já não têm esse peso de uma tristeza que Onésimo classifica como “deprimente”. Esse fio do tempo corre num halo de luz que distingue as fotografias de pai e filho, separadas no tempo e no modo, unidas pelo mesmo sentimento de cumplicidade com os romeiros de São Miguel, tocadas pelo mesmo sopro do vento que Jorge Barros sentiu no rosto, na viagem inaugural a cavalo do mar, “planície infinita” como o descreveu Sophia, outra das vozes poéticas que acompanham desde sempre o grande romeiro do olhar. Jorge nunca viajou sem os seus autores amados, Raul Brandão, Pessoa, Sophia, Alegre.
Algures nesta romagem, os cansados penitentes aproximam-se da linha de água e, como se nos estendesse um bordão para aliviar o esforço, Jorge estende-nos um verso de Torga: “Que infinito silêncio circular”. Adiante, na página e no tempo, Pedro, filho de Jorge, regista o momento em que romeiros extenuados acendem um cigarro junto a um depósito onde está escrito “Não fumar nem fazer lume”.
Um apontamento de Anselmo Borges, o teólogo sábio: “Um rosto é um milagre – cada rosto é único”.
Agora há uma toalha de sol sobre os romeiros. Adiante, a chuva oblíqua, magoando os rostos. Noutra volta do caminho, a páginas tantas, homens massajam os pés doridos mergulhados em bacias de água. Vizinhos concedem mesa farta aos romeiros que lhes passam à porta. Tão expressivas as mãos que correm as contas de um rosário, enclavinhadas numa aflição cantante: ave maria, cheia de graça.