Remexo papéis antigos e encontro notas sobre uma entrevista dada há dez anos ao jornalista Juan Cruz, do jornal El Pais, pela filóloga Inés Fernández-Ordoñez, catedrática de língua espanhola, membro da Real Academia. Nessa entrevista de Abril de 2015, a professora da Universidade Autónoma de Madrid sustenta que “o discurso político desvaloriza as palavras”. Na mira de Fernandez-Ordoñez estavam, antes de mais, os anglicismos e aquilo que designava como “comunicação superficial”.
Nesse desabafo bem sustentado, a professora indignava-se particularmente com o uso da palavra “implementar”, propondo em alternativa a expressão “pôr em marcha”. E ironizava: “Talvez devêssemos ouvir menos os políticos e escutar mais outro tipo de pessoas. Porque o discurso político coloca certas palavras na moda e desvaloriza-as”. Dez anos volvidos, a rapaziada continua a implementar em barda. Paradoxalmente está a palavra precisada de bardos que a exaltem e de bardas que a protejam, tal como aos cavalos das antigas batalhas.
A palavra “implementar”, esse tropeço, é uma das aparentemente imprescindíveis no discurso político corrente. A todo o tempo alguém se compromete a implementar medidas ou exige a sua implementação.
A filóloga espanhola admite que a facilidade de comunicação produz falta de reflexão. Ela chama a atenção para a “ligeireza” que é uma das marcas do nosso tempo. No seu próprio território profissional. “Dantes”, diz Inês Ordonez, “investigávamos. Agora comunicamos por correio electrónico”.
Juan Cruz pede à filóloga que observe mais de perto palavras que, no seu entender, foram ficando vazias: bondade, liberdade, verdade, consenso.
Reencontro estas notas e ponho-me a pensar: será que a palavra “implementar” cabe no poema? Será que, tendo em conta a vaga do uso (não no sentido de vacância, mas no de onda, de vagalhão) a podemos acomodar poeticamente?
Claro que esta é uma piscadela de olho a um poema de Ferreira Gullar, um poema datado, com um contexto social e político, intitulado “Não há vagas”. Procurai o poema que começa com estes versos: “O preço do feijão / não cabe no poema. / O preço do arroz/ não cabe no poema”. É um poema, senhores, que “não fede / nem cheira”. Pode o poema implementar um verso que nos sacuda de alto a baixo?
Talvez com a ajuda da Inteligência Artificial, alvitro.
Vamos ao ecrã mágico. Escreve, disse aos meus botões, “implementar, poema”.
Escrevi- Abriu-se no ecrã uma luz branca de hospital.
E em frase abrasileirada a impositiva voz ordenou-me: “Confirme que você é humano”.
Confirmo, o tanas. Não carrego numa tecla para implementar a minha humanidade.