Máscara sobre máscara

A rubrica diária de Fernando Alves nas manhãs da Antena 1, para ouvir e ler.

Máscara sobre máscara

A rubrica diária de Fernando Alves nas manhãs da Antena 1, para ouvir e ler.

Vimos nas televisões e nos jornais. O rosto de Fernanda Torres foi a máscara mais reclamada no carnaval brasileiro.
Logo no domingo, à hora dos Óscares, centenas de drones formaram no ar de Salvador da Baía, em pleno Farol da Barra, o rosto da grande actriz. Qual Trump, qual Neymar… o rosto de Fernanda multiplicou-se no sambódromo do Rio, no mar de frevo e sombrinhas do carnaval de Olinda. A alegria esfuziante das avenidas tomadas pelos corsos das escolas de samba ou pelo trio eléctrico dizia a alegria de ainda estar aqui, no enlace de euforia e transgressão que não perde o sarro da memória.
Porque a máscara de Fernanda nos milhares de rostos da folia nas ruas é também o rosto de Fernanda Torres com a máscara de Eunice Paiva, a mulher que resistiu à ditadura militar.

Há, aliás, muito que contar dos 21 carnavais brasileiros ao longo da ditadura, da maior e menor resistência das escolas de samba à censura imposta aos enredos carnavalescos. Os mais dóceis passaram à história com a legenda de “enredos chapa branca”.
A revista Veja referia-se, há dias, à “indigesta relação das escolas de samba com a ditadura militar”.

O momento mais desgraçado dessa relação envolve a Beija-Flor de Nilópolis que, em meados dos anos 70, cantou na avenida os feitos do governo militar.

Este ano, a Beija-Flor sacudiu a poeira e, num dos pontos altos do desfile, recriou “Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia”, retomando o mote de 1989 e homenageando mestre Laila e o genial criador Joãozinho Trinta que tinha um dedo luxuoso, mas conhecia muito bem a pobreza. Ele dizia muitas vezes que “o povo gosta de luxo, quem gosta de miséria é intelectual”.

Foi com uma ideia de Joãozinho Trinta que a Beija-Flor esticou a corda da transgressão, em 1989, mostrando luxuosamente a marginalização e a miséria, com a alegoria de um Cristo Mendigo, entre lixo e luxo.

A igreja católica brasileira mostrou de tal forma o seu desagrado que a figura do Cristo Mendigo desfilou coberta por um plástico negro.

D. Helder Câmara não teria protestado no púlpito de Recife e Olinda. Mas D. Helder tinha renunciado quatro anos antes. E vinte anos antes, um presidente brasileiro pressionou o governo da Noruega para que o Nobel da Paz não fosse entregue ao bispo a quem o AI-5 proibia qualquer referência.

Um dos casos mais conhecidos de afrontamento à ditadura foi em 1969, quando a escola de samba Império Serrano apresentou Heróis da Liberdade. A censura retalhou de tal forma o enredo que, onde o samba gritava “é a revolução em sua legítima razão” foi imposto que se dissesse “é a evolução em sua legítima razão”.

Tudo revisto, somado e sambado, aquela máscara de Fernanda Torres entre os foliões do carnaval brasileiro é também a máscara de Eunice Paiva, a heroína retratada no filme “Ainda estou aqui”. Máscara sobre máscara, orgulhosamente rosto.

Texto e programa de Fernando Alves