Coral é uma palavra que respira, uma insinuação de cor, um palpite de textura. Um título fiel, portanto, ao novo trabalho dos The Gift: capaz de despertar todas essas sensações, mas conforme aos seus próprios tempos e limites. É assim que, à entrada do seu décimo álbum, a banda de Alcobaça empurra o ouvinte para um abismo.
Se não há mar, há ainda assim camadas de um azul profundo, pintadas por um coro clássico de Viena. São 48 timbres que antecipam um único, aquele que nos guia desde o primeiro álbum, o Vinyl de 1998: a voz ágil e cavernosa de Sónia Tavares, submetida a uma prova de fogo de 12 faixas. Os The Gift corpo a corpo com maquinaria eletrónica, a percussão dos Pauliteiros de Miranda, as vozes dos Gaiteiros de Lisboa, ou os contributos do produtor polaco-americano Bogdan Raczynski e do compositor catalão Bernat Vivancos.
Coral foi o mote para uma conversa entre a Antena 1 e Nuno Gonçalves, fundador dos The Gift e co-produtor do disco — tarefa que dividiu com Sónia Tavares, com participações ainda do polonês-americano Bogdan Raczynski ou dos espanhóis Bronquio e Ed Is Dead. Depois de dois álbuns em parceria com Brian Eno, Altar (2017) e Verão (2019), há um novo organismo no ecossistema musical dos The Gift. Entre o disco e a digressão, talvez não pare de respirar tão cedo.
Antena 1: Entre a composição, a instrumentação, a interpretação da Sónia Tavares ou o coro clássico de 48 membros gravado em Viena, como se relata a cronologia de Coral? Os arranjos do disco — notoriamente em Cancun e Infinita — sugerem um artesanato cuidadoso, mas difícil.
Nuno Gonçalves: A premissa para este disco era gravar primeiro o coro, e, a partir daí, desenvolver as canções — portanto, um trabalho de tentativa e erro. Só quando gravámos o coro na Áustria, depois de termos gravado dois coros em Portugal – de 24 vozes cada um – é que percebemos que precisávamos de mais peso, mais vozes e mais acerto nos arranjos. Uma coisa é errar quando estás num estúdio com quatro ou cinco músicos; outra coisa é quando tens 48 pessoas à tua frente.
Após termos gravado as vozes na Áustria, o disco ficou resolvido: as estruturas estavam feitas, os arranjos estavam como nós queríamos. Obviamente que tudo isto foi um trabalho doloroso e moroso. Depois do coro, havia que colar a eletrónica, a voz da Sónia, alguns arranjos gravados depois com os Gaiteiros de Lisboa e algumas vozes portuguesas extra para reforçar algumas palavras da Sónia.
Foi um trabalho que não teve uma conduta normal, digamos assim: fomos gravando, percebendo os erros, qual o espaço que podíamos preencher. Acho que é o disco mais rigoroso que os The Gift têm desde sempre, porque, a partir do momento em que entramos numa linguagem coral, dita mais clássica, o preenchimento do espaço é muito importante. Quer pela eletrónica, quer pelo coro – as duas margens deste disco – e a ponte feita pela interpretação da Sónia.
Que influências ajudaram a definir esta fase? Parece pairar aqui, por exemplo, o espírito de alguns discos de Björk, como Biophilia e Vulnicura, onde é patente a tensão entre organismo e maquinaria.
A propensão para canções expansivas — que se desdobram sem constrangimentos — sempre foi apanágio dos The Gift. Ainda assim, o alinhamento de Coral parece inventar a sua própria matriz. A este ponto, ainda sentem o risco e o peso relativo a essa forma irreverente de compor?
Não sei se inventámos a nossa própria matriz, mas o que é certo é que o disco tem um peso inerente a cada canção. Decidimos que cada uma teria as suas próprias portas a abrir. Por exemplo, a faixa Dissonante divide-se em três andamentos: o grave, o andante maestoso, o rubato; no caso do Lamento, toda ela é dolce, feito pelo Bernat Vivancos, um dos arranjadores que vem da escola e da matriz do [compositor estónio] Arvo Pärt. Mas, como a pergunta refere, sempre usámos as nossas canções para as podermos expandir: sempre houve andamentos, partes e estruturas não muito normais.
A sonoplastia e as ondulações eletrónicas apontam para AM-FM, mas o engenho melódico sugere uma continuação direta de Altar. Que lugar criativo vem este Coral balizar na vossa obra?
É claro que, neste disco, há um modo diferente de compor. Porquê? Porque temos a disciplina do coro, e, depois, a nossa maneira irreverente de transportar esse lado rigoroso para algo mais punk, se calhar. É o caso do Passa-se o Tempo, onde decidimos romper a beleza do arranjo coral com uma eletrónica muito agressiva, descontrolada, pontiaguda. O Coral soa a The Gift em 2022: é assim que gosto de ver as coisas. Obviamente, transporta dentro de si toda uma experiência e todo um som que fomos criando ao longo dos últimos anos. Mas os The Gift nunca foram de se encostar à sombra de qualquer caminho já traçado.
Por exemplo, quando trabalhámos com o Brian Eno no Altar e no Verão: sabemos muito bem aplicar as lições que ele nos deu, mas o Coral é outra coisa. É um bocadinho mais do que a junção de todas essas partes que fazem a carreira dos The Gift. É um passo à frente, um caminho novo que ousámos trilhar, que não sabemos se vamos continuar ou não. O Coral é uma lufada de ar fresco na nossa carreira, porque não está balizado por música dita mais apelativa ou mais pop. Sendo que também há pop no meio deste disco: há canções como o Regresso ou o The Girl Next Door ou o Cancun, que são experiências mais orientadas para a dança.
Isso é interessante: o Coral não se fecha no coro. Há aqui muito caminho para trilhar, e é bom estarmos em 2022 a falar de um disco que nos desafiou. Essa é a palavra mais importante quando se tem uma banda há tantos anos: sentir-se desafiado pela própria música que se faz.
Que outras configurações vai este disco tomar, além de um livro de capa dura com 72 páginas?
Quando se vai a uma exposição, tem-se o catálogo da exposição. Nós decidimos fazer o catálogo deste Coral (risos), esse livro onde há textos dos maestros, dos arranjadores, das pessoas que influenciaram diretamente a composição e a gravação deste disco. Achámos por bem fazer uma edição cuidada, uma edição de estante. É muito importante não retirar a música das estantes, garantir que ela tenha um lugar nas bibliotecas de quem a ouve. Costumamos dizer que ainda gostamos de ouvir música a tocar o papel. Sabemos que, felizmente, o vinil começa a trazer as músicas novamente para as estantes e não só para os dispositivos móveis.
Agora, estando na moda, e ainda bem, a produção desse mesmo vinil demora muito tempo. Mas nós achamos que, nos próximos meses, vai haver uma edição deste disco em LP, como tem acontecido com toda a nossa discografia. Este Coral precisa desse lado quente, mais íntimo que o vinil nos traz.
Para já, Coral existe como livro de capa dura, apenas na REV — plataforma disponível apenas por subscrição, onde se reúne toda a discografia dos The Gift, além de documentários de bastidores, podcasts e programas gravados pela banda… Essa vai ser a única forma de agarrar este álbum?
Durante muitos anos, combatemos algum cinzentismo das editoras, e por isso criámos a nossa editora em 1998: a La Folie Records. Achámos que a REV era uma resposta a essa independência que os The Gift sempre quiseram. Se temos as músicas editadas por nós, a nossa própria agência e maneira de fazer as coisas, porque não ter o nosso canal? Mais do que um meio ser a mensagem, o meio é uma maneira nova de propor as coisas. Esta plataforma permitiu-nos, no dia do lançamento do Coral, lançar um documentário com quatro episódios que mostra a gravação deste projeto. Ter também o storytelling onde explicamos as nossas ideias canção a canção, colocar o disco ao vivo, estrear os nossos videoclipes…
A REV funciona como o nosso parque de diversões, o sítio onde nos sentimos melhor e onde o público que gosta dos The Gift sabe onde vai ouvir o disco da melhor forma possível. Agora, nós não somos fundamentalistas. O Coral tem de ser descoberto por outras pessoas fora da REV. A pouco e pouco, vamos lançando o disco noutras plataformas, para que as pessoas, quando chegam aos espetáculos ao vivo – e felizmente já temos muitos marcados – consigam perceber que disco, que universo é este. Quando os The Gift tocam ao vivo este álbum, tocamos apenas e só este álbum, com 24 pessoas a cantar em palco, com a Sónia, com um cubo que é como se fosse o nosso olho pelo mundo – onde estão uma série de videoartistas que colaboraram connosco.
Portanto, não vamos restringir o Coral. Isso seria um bocadinho suicida neste momento. Os The Gift sempre foram um bocadinho punk na forma de pensar, mas uma coisa é ser punk, outra coisa é ser maluco. (risos)
Entrevista de Pedro João Santos (editada para efeitos de clareza e concisão)