Faz agora um ano, a SIC Notícias transmitiu uma reportagem da Sky News em Rafah, a cidade que acolhera um milhão de refugiados e onde ainda era possível comprar tomates e pepinos. No mercado, com alguma sorte, os mais afortunados talvez encontrassem meio frango. Enfim, “a um preço astronómico”, sublinhava o repórter.
Há um momento da reportagem em que aparece um homem alto, de samarra com gola de pele de carneiro, um gorro sobre o cabelo muito curto, barba mais espessa, nariz adunco, olhar penetrante. O homem dirige-se ao repórter e explica-lhe que as pessoas não têm dinheiro que lhes permita comprar o que quer que seja, ficam apenas a olhar umas para as outras. Mas a reportagem da Sky News mostrava que as pessoas não ficavam só a olhar umas para as outras. Ali estavam as crianças acotovelando-se, segurando pequenas panelas na fila por uma sopa aguada, um caldo de penúria. Como num formigueiro alvoroçado, atropelavam-se na urgência de uma sopa de batata. A dado momento, a reportagem seguia um rapaz que regressava com a panela vazia, a sopa tinha acabado antes de chegar a sua vez.
Creio ser aquele o mesmo homem que distribui sopa na banca humanitária na foto que serve de capa ao JN esta manhã. É uma foto obtida por Eyad Baba, da AFP, Ele é um dos bravos da agência que nos tem revelado os dias do “inferno de Gaza”, legenda da exposição montada no Centro de Fotojornalismo de Bruxelas, no início deste ano.
Chegam de Gaza notícias de uma vaga de pilhagens que bloqueiam a capacidade de resposta das agências humanitárias agravando a situação de fome generalizada, em si mesma uma repugnante arma de guerra.
A Euronews reportava, por estes dias, a situação de quase colapso vivida pelas cozinhas solidárias.
É o que mostra a foto de Eyad Baba, na capa do JN, esta manhã. Se passares por um quiosque, demora-te diante desta primeira página, no emaranhado de gestos, no desespero mudo destas mulheres esticando os braços para a sua ração de sopa aguada, tenta escutar os gritos suspensos, a fúria destas vozes emudecidas na capa de um jornal. E, todavia, gritam.
Estou capturado por esta imagem, o olhar de uma severidade fraterna na distribuição da sopa tão minguada, o olhar que caustica o atropelo dos desesperados para que todos possam partilhar a penúria insultuosa. Hoje vou pedir uma sopa no restaurante, vou pensar nesta imagem de capa do JN e no breve poema de Ruy Belo: “Um prato de sopa um humilde prato de sopa / comovo-me ao vê-lo no dia de festa / e entro dentro da sopa / e sou comido por mim próprio com lágrimas nos olhos”.