É uma espécie de tiki-taka nas teclas do computador, dedos ágeis como o pensamento, favorecendo a precisão e a inteligência. Mário Silva da Costa, o jovem jornalista que, todas as manhãs, se desmarca para o remate certeiro na grande área da rádio cultiva a observação subtil, o tratamento jornalístico do desporto não tem de ser meia bola e força. Gosto de trocar com ele breves observações sobre a felicidade de um título dos jornais desportivos ou sobre os instantes felizes em que o fenómeno desportivo acolhe o mais gentil da condição humana. Esta manhã perguntou-me se eu gostava de ciclismo, se o ciclismo me interessa ou interessou. Eu lembrei-me da colecção de cromos de ciclistas que povoaram a minha adolescência, quando o pelotão era dominado pelo Benfica, Sporting e Porto, João Roque, Francisco Valada, o grande Agostinho, Jorge Corvo, Alves Barbosa, Leonel Miranda, Firmino Bernardino, Marco Chagas. Lembrei-me das histórias que meu pai contava sobre a grande rivalidade entre o possante José Maria Nicolau e o valoroso lingrinhas Alfredo Trindade. Poderia ter-lhe dito que não perco as etapas da Volta, que já me comovi com descrições de João Pedro Mendonça, que detesto o tacticismo do pelotão, torço de modo quase infantil pelos fugitivos, vibro com a coragem dos grandes trepadores. Poderia dizer-lhe que uma das leituras mais marcantes da minha adolescência foi a de um romance de Roger Vailland sobre um ciclista em queda e que guardo com emoção uma fotografia que me foi oferecida por Roberto Santandreu, da sua exposição A Valsa das Bicicletas, vultos dobrados sobre os guiadores numa vertigem desfocada, uma espécie de bailado em selim e pedaleira que Santandreu registou em tarde feliz numa praça de Varsóvia. Poderia sugerir-lhe que um dia destes revisitasse a Balada das Meninas de Bicicleta, de Vinicius. Ou que procurasse uma certa fotografia do formidável Fernando Assis Pacheco despachando manguitos junto à bicicleta com a qual se fez transportar para o casamento.
Mas o Mário agitava diante dos meus olhos a última página do jornal A Bola dedicada a Francisco Araújo que ontem morreu aos 90 anos. Chamavam Chico de Sacavém a este grande quase anónimo do ciclismo, mais de quarenta edições da Volta a Portugal cuidando de transmissões e mudanças, correntes, selins e eixos pedaleiros, 16 anos mantendo como um brinco a máquina de Joaquim Agostinho, de quem foi amigo e confidente. Os amigos de Francisco Araújo, o Chico de Sacavém, que chegou a ser considerado “o melhor mecânico do mundo”, despedem-se dele esta manhã no crematório da Póvoa de Santa Iria. E eu lembro-me de um poema de Ruy Belo que poderia ter sido uma notícia. “José Maria Nicolau fugiu. Quem o apanha? / Nunca ele pedalou tanto como agora/ Decerto vai chegar antes da hora/ A etapa era decisiva e está ganha”.
Os dedos de Mário correm ágeis nas teclas do computador. Ele tem uma meta volante daqui a nada, às nove e um quarto. E um prémio da montanha às 9 e meia. Não pode parar de pedalar.