Na primeira manhã de verão sentei-me na cadeira da barbearia e com um gesto largo, mas sem glória, sentenciei: “Mande tudo abaixo”. O barbeiro sorriu e exercitou sobre os meus raros cabelos, uma ruidosa operação de geometria com pente 3.
A cadeira do barbeiro é o único lugar onde me demoro ao espelho. Menos por causa do cabelo e da sua volumetria ou ondulação, mais pelo crânio dos avós de que fala um certo poema de Natália. Diante do meu cabelo ao espelho, fico entregue, olhos nos olhos, aos meus botões.
Lembro-me de um camarada de ofício com quem me cruzei há meio século. Tinha o cabelo sempre muito penteado e com um brilho muito intenso, talvez de brilhantina, ao ponto de se comentar, a seu respeito, que usava cabelo natural a imitar peruca.
Cuidava esse camarada mais do penteado que da beleza do ofício, da sua arte pouco brilho transparecia. É certo que, como se diz, a barba não faz o filósofo, mas este é um ofício que talvez reclame cabeças e ideias despenteadas. Ideias, mais do que cabeças. Que, ao menos, o pente das modas uniformizantes não imponha uma arrumação sem ondas por dentro das cabeças.
Sei de um tipo cujo penteado desgrenhado o demorava horas diante do espelho. Aquele desalinho tão composto pedia muito pente e gel. Há desarranjos que têm o seu quê.
Este sábado, enquanto eu não tirava os olhos de mim, o barbeiro submeteu à mais ínfima expressão o tão pouco cabelo que me resta. No barbeiro, quero é que seja rápido, para procurar depois, com vagar, uma sombra cá fora. Não gosto de me demorar em lojas ou em casas em que obtenha um serviço, salvo em livrarias. Também me demoro em igrejas, quando as encontre vazias. Mas ali, diante do espelho, enquanto o barbeiro me aparava uma vaga simetria capilar, pensei num aparte de Rubem Braga, n’ “A Traição das Elegantes”. “Olho-me no espelho”, anotou o sabiá, “e percebo que estou envelhecendo rápida e definitivamente; com esses cabelos brancos parece que não vou morrer, apenas minha imagem vai-se apagando, vou ficando menos nítido, estou parecendo um desses clichés sempre feitos com fotografias antigas que os jornais publicam de um desaparecido que a família procura em vão”.
Na rua, sou ultrapassado por uma mulher que esbanja privacidade em alta voz, como agora é moda. A mulher veste uma blusa indefinida e uns collants pretos muito justos. Reparo que os collants terminam logo abaixo dos joelhos, deixando ver tatuagens que batem certo com o tom de voz. As tatuagens que a mulher exibe nas barrigas das pernas parecem gritar a mesma simetria que o barbeiro aparou no meu rosto, ainda agora. Afinal, reparo melhor, não se trata de tatuagens, mas de collants imitando tatuagens. E lembro-me de certa vez, na aldeia do Sabugueiro, lá no alto da serra da Estrela. Alguém colara, na parte de dentro de um vidro sujo, numa loja de artigos regionais, um papel que dizia: “Temos queijo tipo-tipo Serra”.
Queijo a imitar queijo, tipo collants a imitar tatuagens, tipo cabelo natural a imitar peruca. Tipo, como agora se diz, partindo as frases.