Francesc Peirón, o correspondente do jornal “La Vanguardia” em Washington, puxa para título a fórmula curta e grossa utilizada por Trump com alguns dos alvos da purga administrativa posta em marcha depois de ter colocado a mão sobre a Bíblia: “Estás despedido”.
O retrato do general Mark Milley já não está na parede da sala do Pentágono dedicada aos mais destacados comandantes militares e o chefe de cozinha espanhol José Andrés, fundador da ONG World Central Kitchen, que vinha coordenando, junto da administração Biden, um grupo de trabalho voluntário promotor de boas práticas desportivas e alimentares, foi despachado sem a mínima elegância protocolar.
José Andrés, o espanhol com cidadania norte-americana que Biden condecorara recentemente com a Medalha da Liberdade, não encaixa na fórmula trumpiana de uma América novamente grande. Mas, neste caso, a fúria saneadora do novo mandante chove no molhado. O chefe de cozinha cujas receitas públicas não prescindem do lume da solidariedade (e isso explica a Medalha Nacional de Humanidades concedida por Obama em 2016) já tinha deixado a mesa limpa, o exaustor ligado, depois de estender a toalha aos socorristas e às famílias atingidas pelo fogo de Los Angeles. Em duas semanas, Andrés garantiu 200 mil refeições. A mesa que ele alimenta é tão larga como os sonhos transformadores. Mas ele não teme o caldo entornado. Em tempos, esteve muito perto de abrir um restaurante num hotel de Trump em Washington. Mas mandou a ideia à fava depois de escutar comentários inaceitáveis do actual presidente sobre os mexicanos. O diferendo chegou à via judicial, os dois estão separados por muito mais do que o apreço por tacos e burritos.
José Andrés cuidou de alimentar os de Gaza e os da Ucrânia. A mesa que ele concebeu é maior que a América. E nela pousa a toalha branca da decência. Isso lhe permitiu lembrar ao mandante que o deu como despedido que tal seria impossível pela razão simples de que ele, o chefe José Andrés, se tinha demitido há duas semanas.
Cruzo as passagens de um choque entre duas visões do mundo, duas visões da mesa que o mundo é, mas o que me prende é a foto de Leigh Vogel, da agência Efe, que ilustra a notícia de La Vanguardia.
Biden está por detrás do grande chefe de cozinha, prende o colar da alta condecoração com que o distingue. José Andrés ergue um dedo, apontado ao tecto, algo que não podemos ver. Mas aquele dedo da sua mão feita à dose justa dos condimentos, assim erguido ao alto, dá-nos uma ideia de elevação capaz de resistir a todos os dedos impositivos que façam de nós um alvo. Nestes tempos de um avassalador império da imagem, um dedo assim, serena e comovidamente apontando a algo superior, eleva a nossa condição.