Chico Buarque divide-se entre cânones: o musical e o literário… Talvez não seja bem isto; refaçamos (vamos tentar). Chico Buarque combina o melhor de duas sensibilidades: a musical e a literária. É mais neste sentido, sim. Para o constatarmos, não precisamos dos seus livros e do merecido Prémio Camões. Os discos de Buarque mostram o quanto a música é poesia feita som, dada a interpretações mais apaixonadas ou racionais, ou mesmo de profundidade académica.
Uma só temática recorrente na sua obra, por exemplo, já inspirou mais do que um livro: “Quem é essa mulher? – A alteridade do feminino na obra de Chico Buarque de Hollanda” (2017, Cepe); “Essas mulheres: O protagonismo da mulher na canção de Chico Buarque” (2021, Recriar), além de infinitas conversas no mundo virtual.
Buarque desenha a mulher enquanto ser complexo e multifacetado, comprometido com a sua humanidade: as mulheres de Chico (como as de Almodóvar). Existem em contraste com alguns homens de Chico, personagens pequenos, manipuladores e anacrónicos. Basta lembrar a controvérsia de 2017 com o single “Tua Cantiga”, e pensar no enredo de “Feijoada Completa”, onde quem tem direito a sentar-se à mesa não é quem prepara o banquete. Ou, então, mirar o exemplo das “Mulheres de Atenas”, reduzidas a complementos dos seus maridos, autoridades a quem tudo perdoam.
Elas não têm gosto ou vontade
Nem defeito, nem qualidade
Têm medo apenas
Perante a violência e a traição, espera-se paciência, beleza e fidelidade: virtudes que o arranjo musical imagina, com um toque de ironia. Se em “Feijoada Completa” ouvíamos um samba frenético, nesta faixa do álbum “Meus Caros Amigos” (1976) – composta para uma peça do dramaturgo brasileiro Augusto Boal – recebemos guitarras repenicadas, uma batida suave, e a voz pacífica de Buarque. De verso em verso, de rima em rima, ficamos com uma impressão de estabilidade ou segurança; é, pelo menos, o que parece a ouvido nu. Segundo as investigadoras Tatiane Kaspari e Juracy Assmann Saraiva, essa rigidez pode ser uma pista sonora no sentido contrário: o destino destas figuras está traçado, uma ladainha triste, à mercê dos homens que as destratam.
As “Mulheres de Atenas” não são apenas as Helenas; a dedicação desigual não é só a história de Penélope e Ulisses. Este quotidiano de sofrimento e injustiça foi e continua a ser de muitas mulheres por todo o mundo. Haja, pelo menos, um homem capaz de escutar a sua dor, e fazer dela música, poesia, ambas ao mesmo tempo.