Não faltam, nos últimos anos, grandes vozes a afirmar a chegada de uma nova e vibrante geração de fadistas. Cantores crescidos já na certeza de que o fado não é uma música que envergonhe nem é exclusiva dos pais e dos avós, tomando a canção portuguesa como sua, de hoje, e sem pedir desculpa ou licença a quem quer que seja. Diana Vilarinho podia ser apenas mais uma dessas vozes. Mas não é. Antes de mais porque, ao escutá-la, sabemos de forma instantânea que estamos diante de uma voz de hoje escancarada para o futuro. Mas não o é também porque soube resistir e não apressar a sua estreia discográfica – não foi atrás da primeira oportunidade de gravar e apresentar-se ao mundo. Ao invés, quis esperar por encontrar o seu repertório, poemas que sentisse que podia defender com a própria vida, histórias sobre as quais teria algo a dizer e que não adoptou por mero encanto melódico.
Diana Vilarinho coloca-se em cada poema, ouvimo-la inteira e arrebatada em cada verso, percebemos que a sua vida transborda em cada sílaba. E de quantas vozes em início de carreira podemos dizer semelhante coisa?
Falarmos de início de carreira, em rigor, talvez possa tratar-se de um equívoco. É verdade que só agora o nome Diana Vilarinho se aproxima dos ouvintes comuns, menos frequentadores das casas de fado. Mas é incontestável que a vida desta mulher de 23 anos há muito que é marcada pelo fado.
O fado entrou por uma porta lateral, imprevista. Em criança, os pais quiseram que Diana dedicasse algum do seu tempo fora da escola a desenvolver uma actividade. Ela até preferia ter ido para o karaté, mas foi empurrada para aulas de canto e de dança. Tinha sete anos e aplicava então a sua voz de menina a cantar e gravar canções ligeiras que alimentavam concursos de norte a sul do país. Preenchia os dias e alimentava o sonho dos palcos. Até que um dia, passado um ano, alguém se virou para a professora Ilda Ventura, que a orientava e escrevia os poemas que Diana cantava, e perguntou: “Então e já mostraram o fado a essa rapariga?” Podia ser daquelas perguntas que desembocam em nada. Mas a professora levou o desafio a sério. Num primeiro momento, como acontece com tantos amores nas nossas vidas, Diana torceu o nariz. Aquela música, pesadona, trágica e demasiado adulta, nada lhe dizia. Mas a curiosidade tinha sido espicaçada e a porta ficara entreaberta. E à medida que mais espreitava e mais se intrigava com aquela música, mais a atracção se acentuava.
Tendo sido os pais a colocá-la na rota do canto, caberia depois aos pais alimentar o fogo da paixão que já fervia na pequena Diana. E lá se responsabilizaram pelo ritual de peregrinação às colectividades é às casas de fado para a menina experimentar e moldar aquela música na sua voz. Quase sem dar por isso, a paixão instalara-se e aos dez anos vencia a Grande Noite do Fado e não deixava grandes dúvidas: o destino estava traçado e não havia como detê-lo. A partir daí, mais portas passaram a abrir-se à sua passagem e mais músicos foi conhecendo, acumulando sofregamente experiências e conhecimento.
Se de início se escrevia que Diana Vilarinho não avançou cheia de pressas para se apresentar ao país como fadista, isso aconteceu porque a ginástica das casas de fado mostrava-lhe todos os dias que este é um género musical que, assentando em grande parte naquilo que o/a fadista tem para oferecer, Diana precisava de sentir que o seu caminho era mesmo seu e não tomado de empréstimo. Ou seja, se o fado já tomara conta da sua vida, agora era a sua vez de tomar conta do fado, fazê-lo seu, habitá-lo com toda a sua verdade. E à medida que aprimorava um canto que, desde logo, conquistou os ouvidos mais experimentados, ia percebendo como melhor vestir a pele de cada poema e a importância de se dedicar sobretudo àqueles que lhe assentavam bem no corpo e na voz. Os anos avançavam, a vida corria e os fados revelavam-se.
Prova do percurso cuidado e rigoroso que Diana Vilarinho começou a preparar é o período de quatro anos que este disco de estreia levou a ser trabalhado. Diana acredita que se qualquer pessoa demora a encontrar o seu lugar no mundo, com um artista essa procura não conhece atalhos mágicos. Pelo contrário. Daí que tenha esperado pacientemente pelos poemas certos, pelos músicos perfeitos, pelo produtor certeiro.
A forma como Diana Vilarinho se entrega a esse tema de profunda carga dramática, em assumida homenagem a Mísia e a Agustina, é um dos momentos mais sublimes deste seu notável disco de estreia. Ultrapassado o receio de gravar o Fado Menor, uma prova de fogo para qualquer fadista, soube arrancar às suas entranhas esta lenta procissão da dor amorosa, preciosamente delineada pelo inspirado trio de músicos que lhe acompanha cada passo cantado: Bernardo Couto (guitarra portuguesa), Pedro Soares (viola) e Francisco Gaspar (baixo).
Foi com esse trio, num primeiro momento, que Diana trabalhou com minúcia os arranjos para a dezena de temas que compõem o seu primeiro álbum, quase por inteiro dedicado a fados tradicionais seja com letras de Fernando Pessoa, Tiago Torres da Silva ou António Aleixo. O poeta popular surge em dose dupla, aliás, em “Com os Meus Olhos te Digo” e “Estas Quadras que vos Deixo”. No segundo caso, um exemplo primoroso de como Diana Vilarinho consegue veicular uma encantadora leveza na voz ao mesmo tempo que dá voz a todo um programa de vida :”O mundo só pode ser / Melhor do que até aqui / Quando consigas fazer / Mais p’los outros que por ti”; no primeiro, uma prova inequívoca da especial ligação construída com o produtor Ricardo Ribeiro, o extraordinário fadista que quis guiar esta gravação de Diana e compôs a música para estes versos depois da cantora por eles se encantar numa livraria, os partilhar e passados 30 minutos ter como resposta uma música feita à medida daquele encontro imprevisto (e aqui interpretada apenas na companhia do piano de Filipe Raposo).
O convite a Ricardo Ribeiro acabaria por ser uma extensão natural das muitas tardes em que Diana procurava o fadista no Faia, tardes passadas a conversar, a desfazer dúvidas de repertório, a afinar a lucidez em relação ao lugar do fado no dia-a-dia. Depois, já no lugar de produtor, Ricardo Ribeiro havia de ensaiar minuciosamente com a fadista e os músicos os dez temas do disco. Entre os quais um inédito de Carminho, “Sou Um Barco Sem Memória”, resultado de muitas horas de conversas entre as duas e de ensinamentos transmitidos pela fadista mais experimentada.
E esse será talvez o grande gesto que Diana Vilarinho esboça neste disco: a vontade imensa de aprender e se entregar sem reservas a uma canção que já domina com toda a propriedade. Da candura tocante de “O Final de Uma Canção” e da sedutora mestria com que domina e se apropria da história de ferida beleza que Max tornou num clássico em “Quando a Dor Bateu à Porta”, à vivacidade “bairrista e popular” de “Só Lisboa”. Sem artifícios nem grandes pretensões. Somente uma enorme voz a revelar-se e a envolver-nos naturalmente consigo.
Diana Vilarinho é uma voz do fado para amanhã. Mas o seu futuro começa a cumprir-se já hoje, sem demoras, neste disco baptizado apenas com o seu nome – é ela e apenas ela, sem distracções.