A propósito da reedição de mais 3 discos da obra de
José Afonso, a Ana Sofia Carvalheda conversou com o jornalista Gonçalo
Frota que em cada disco escreve um texto que integra este lançamento.
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Venham Mais Cinco
José Afonso, 1973
Alinhamento:
01 – Rio largo de profundis 2!46"
02 – Era um redondo vocábulo 3!21"
03 – Nefretite não tinha papeira 2!30"
04 – Adeus ó Serra da Lapa 1!38"
05 – Venham mais cinco 4!40"
06 – A formiga no carreiro 3!31"
07 – Que amor não me engana 3!49"
08 – Paz, poeta e pombas 2!31"
09 – Se voaras mais ao perto 2!22"
10 – Gastão era perfeito 2!26"
Um disco, cinco directas
"Zeca e Zélia Afonso, mais Mário Jorge Bonito e Jorge Luz, estavam na régie e ouviram todo o disco, defio a pavio, dando o seu aval final às gravações que os tinham ocupado durante os dias anteriores.
“Está tudo bom?”, perguntou José Mário Branco. Assim que o “sim” pretendido chegou, o corpo cedeu, desabou sobre a mesa e ali ficou, imóvel. “Só não fui de ambulância para casa porque eles perceberam logo o que se tinha dado”, recorda hoje o músico escolhido por Zeca para dirigir os trabalhos de estúdio do seu sexto álbum na Orfeu, Venham Mais Cinco.
“O que se tinha dado” é simples de explicar. Nos caminhos por vezes algo insondáveis da correspondência pré-25 de Abril, do material enviado por José Afonso a José Mário Branco para preparar o seu novo álbum, apenas as letras encontraram o caminho para a casa parisiense onde estemorava na altura. As maquetas, os fundamentos melódicos e as ideias a partir das quais José Mário deveria começar a desenhar com antecedência os contornos concretos do disco nunca lhe bateram à porta. Até ao dia em que foi o próprio Zeca que, no lugar de umas gravações de trabalho, se apresentou perante José Mário para lhe apresentar as canções em carne viva. Faltava menos de uma semana para o calendário ditar o início do registo de Venham Mais Cinco.
Com um disco de intervalo – Eu Vou Ser Como a Toupeira, de criação colectiva em Madrid –, Zeca volta a colocar as suas canções nas mãos de José Mário Branco. Depois do resultado absolutamente genial (palavra que devia ser de uso raro, mas aqui justificada) de Cantigas do Maio, a opção de um disco em total clima de fraternidade volta a dar lugar ao trabalho mais metódico e rigoroso de José Mário. “Para já porque o Cantigas tinha corrido bem”, diz o “produtor” justificando a sua nova parceria.
“E porque tinha corrido medianamente o disco que ele fez entre estes dois, em Madrid”.
Gravando novamente em Paris, desta vez a viagem faz-se não para Hérouvillle – “tinha acabado de fechar por quezílias entre sócios”, explica José Mário –, onde se gravara Cantigas, mas para um novo estúdio que Gilles Sallé tinha entretanto fundado com o seu assistente Christian Gence, num centro comercial situado na zona sul de Paris. “Era como se fosse uma loja num centro comercial mas eles isolaram aquilo, pintaram os vidros e chamaram-lhe estúdio Aquarium”, recorda ainda.
Com Zeca, de Portugal, segue o guitarrista brasileiro Yório da Costa Gonçalves. Músico de grande primor técnico, cheio de música a escorrer-lhe das mãos, assim que chega a Portugal Yório encontra-se com dois primos que haviam emigrado antes e conheciam já o país. Com eles, Yório forma um grupo chamado Acaua, que vai tocando por aqui e por ali, e através deles – e do amigo comum, o médico José Ribamar das Neves – chega igualmente a José Afonso. “O Ribamar das Neves falou a meu respeito com o Zeca, que na altura estava procurando um violão para concertos e gravações”.
“Depois disso”, vai Yório buscar à prateleira das memórias, “ele marcou um encontro na casa de um amigo comum dos dois que também era médico e que de vez em quando fazia caricaturas para um matutino lisboeta”. Foi nesta casa anónima que Yório e Zeca finalmente bateram com os olhos um no outro e foi nesse encontro que o guitarrista ouviu pela primeira vez uma canção nova, intitulada “Venham Mais Cinco”. “Tocámos juntos e lembro-me de achar a canção muito bonita pois havia aquele ritmo e aquelas harmonias bem africanos. Ficámos de nos encontrar em breve, mas infelizmente recebi a notícia de que o Zeca havia sido preso e estava em Caxias”.
Foram 21 os dias na prisão de Caxias. Os movimentos de Zeca Afonso andavam sempre debaixo de um olhar especialmente atento e controlador por parte da Direcção-Geral de Segurança (DGS) e tinham sido já várias as vezes que fora chamado ao posto de Setúbal da polícia política. Aos olhos do regime e do seu policiamento, Zeca era, naturalmente, um cidadão incómodo, capaz de acicatar ânimos, e abertamente contestatário da ditadura instalada. A 20 de Abril de 1973, quando a DGS lhe bate à porta da casa de Setúbal, passa a habitação a pente-fino. O episódio seria assim recordado pelo próprio: “A última vez que fui preso tinha ido esperar o meu pai ao aeroporto. Vim para casa, dormi mal e no dia seguinte bateram à porta. O meu filho Zé Manel foi abrir. O inspector apresentou-lhe o crachat da polícia e ele voltou-se displicentemente para a sala a dizer "Oh pai, é a prestimosa!. O tipo entrou e fizeram a vasculhação”. Descobrem então propaganda política portuguesa e galega.
Desde logo colocado no isolamento, Zeca é interrogado várias vezes. Ao fim de seis dias, recebe papel e caneta. Não podendo evadir-se de outra forma, desenha as palavras com um propósito escapista, embarcando frequentemente em textos (cerca de 20) de teor surrealista, entre os quais “Era Um Redondo Vocábulo”. “Podia ser uma canção de combate”, coloca José Jorge Letria em perspectiva, “a dizer "romper as grades e voar!. E não, faz um texto absolutamente surrealista, de um homem que pode estar à beira da loucura e está na pura efabulação surreal. Todo ele é um texto cifrado, de um
homem que está em profundo sofrimento”. Não tendo uma guitarra para lhe aprouver, Zeca constrói toda a música, toda a estrutura melódica e armazena-a na cabeça.
Anos mais tarde (1980), em entrevista a José Carlos Vasconcelos publicada no jornal Se7e, o músico bifurca as suas canções: “O primeiro tipo reflecte a linguagem directa, que se ouve nas ruas. São canções tanto quanto possível didácticas (não paternalistas) e portanto de assimilação imediata, pretendendo-se encerrar numa quadra um conjunto de vivências que pertencem a muita gente”.
Representam, numa certa medida, o compromisso de Zeca, na sua função de amplificador da voz do povo – muitas vezes turva, indistinta e um rumor de vozes pouco discernível se deixada à sua sorte, mas clara, explicada, inquisitiva se devidamente canalizada e processada por um canal limpo e iluminado como era o seu canto. Uma segunda ordem de canções, que o próprio exemplificava com “Nefretite Não Tinha Papeira” ou “Tenho Um Primo Convexo”, “não terão função nenhuma numa assembleia popular, mas que eu gosto igualmente de fazer”.
“Depois de Caxias, voltei a vê-lo passado um mês”, lembra Yório. A relação entre os dois estava ainda muito no início, Yório ainda nem sequer acompanhara Zeca ao vivo, “até porque ele se acompanhava em várias canções”. Na companhia de Ribamar, o elo comum, Yório segue até Setúbal. “Foi lá que ele falou que queria que eu tocasse no disco que ele ia gravar, o que aceitei de imediato. Mas nem nessem dia nem nos tempos em que estivemos juntos para tocar e compor, ele nunca comentou nada a respeito de Caxias, e como sei que foi doloroso também eu não disse nada”.
Com Yório já instalado, a viver com Zeca em Setúbal, “de lá foram saindo as canções com quase todas as letras prontas, à excepção de uma ou duas que ele ia mudando”. “Venham Mais Cinco”, a primeira de todas que Zeca lhe mostrara para integrar esse disco, a canção nuclear, talvez o último exemplo maior da sua cartilha de canções de agitação popular, constituía também uma excepção, mas em contramão, em sentido contrário. Estava integralmente gizada – “já não havia espaço para arranjo de viola, pois até já havia o interlúdio no meio dos versos, que era ideia do Zeca, e foi a única música que já tinha harmonia própria”, recorda o guitarrista –, Yório tinha apenas de assumi-la. “Nas canções seguintes, a parte da viola corresponde sempre a arranjos meus e o Zeca deu-me liberdade para tocar, embora sempre trocando ideias para que se conseguisse um bom resultado”.
José Mário conhece Yório naquele preciso momento em que lhe aparece à porta, com Zeca e José Niza, músico e representante da Orfeu, os tais quatro ou cinco dias antes da data marcada para a entrada em estúdio. “Foi terrível, terrível”, recorda José Mário Branco, então como antes interpretando a sua função não como fazedor de arranjos ou de orquestrações, mas sim de encenações sonoras.
Comparativamente a Cantigas do Maio, reflecte, “o Venham Mais Cinco foi mais problemático – o processo, não o ambiente e o relacionamento, que foram excelentes. Foi mais físico”. E físico, naturalmente, porque a “planificação foi prolongada para dentro das datas de gravação”. “Foi a directa
mais longa da minha vida, mais longa até que os interrogatórios que tive na PIDE”, diz. “Fiz umas cinco directas por causa desse aspecto”.
Musicalmente, considera ainda José Mário Branco, “o teor das Cantigas é muito mais sugestivo de soluções heterodoxas”. Em Venham Mais Cinco, por outro lado, José Mário mantém a ideia de “encenações sonoras, mesmo que faça parte da encenação uma certa referência – que diria quase metafórica – à música de câmara erudita”, dada a presença de um pequeno ensemble de cordas. “Mas acho que isso também resulta bastante do guitarrista”, analisa. “Este guitarrista do Zeca nesta altura [Yório] é um tipo que não toca como o Carlos Correia, muito menos como o Rui Pato. É um brasileiro, com mais música na cabeça, com boa técnica, e portanto capaz de inventar coisas muito maisvariadas, diferentes do costume”.
Forçado a imaginar as encenações durante a noite, a passá-las para o papel e a buscar no dia seguinte músicos capazes de lhes dar vida, José Mário é, às tantas, surpreendido por um pedido inesperado de Zeca. África, é bem sabido, começara já a fazer-se sentir cada vez mais na sua música, encontrando formas várias de se lhe infiltrar nos ritmos e nas melodias. José Mário contaria já que essas nuances nas composições de Zeca emergissem nalguns dos temas emalados para Paris, mas não contava com a necessidade imperiosa do músico para o tema “Venham Mais Cinco”: “O Zeca queria muito uma voz de preta”. Se os contactos que fora maturando no seu exílio parisiense lhe permitiam chamar bons músicos franceses em cima da hora, para dar resposta imediata àquilo que o disco ia exigindo no seu passo apressado para o final, perante esta situação a agenda de José Mário revelou-se insuficiente.
Começa então a telefonar a todos os amigos franceses, gentes da música e do teatro: “Pá, preciso de uma voz de preta, daquelas vozes muito doces, muito a rasgar, palhetada, muito africana, onde é que arranjo isso? Só oiço isso nos corais da África do Sul”. Depois de várias tentativas, alguém cujo nome já se perdeu nas bolandas do tempo, responde-lhe enigmaticamente: “Vou dar-te um número de telefone, mas não te assustes com o nome da pessoa e chama essa senhora para cantar”. Para as mãos de José Mário é assim passado um papelinho com um número, acompanhado de “um nome aristocrático”: Janine de Waleyne.
Waleyne é contactada e acede a passar pelo estúdio. Dá-se nesse momento o espanto colectivo quando entra “pelo estúdio adentro uma valquíria, uma mulher alta, loira, de olhos azuis”. Acontece que Janine de Waleyne era uma das fundadoras de Les Blue Stars de France, o primeiro grupo mundialmente conhecido de swing a capella. “Escrevemos as onomatopeias todas, quase uma transcrição fonética de como o Zeca queria aquilo pronunciado”, lembra José Mário. Depois de tudo explicado, a cantora pediu meia hora, retirou-se e enquanto os músicos iam avançando noutros afazeres, preparou-se sem falha. “Ela fez aquilo maravilhosamente, o Zeca ficou deliciado”.
Venham Mais Cinco seria igualmente um disco carregado de humor, com alguns temas a raiar a caricatura. “Por exemplo”, conduz-nos José Mário Branco, “o "Paz, Poeta e Pombas! tem, feita por mim, a caricatura do locutor de rádio, que tinha sido o meu primeiro emprego em Portugal, mas há também a
caricatura da salsa com trompetes, sax tenor e trombone e a caricatura do coro das formiguinhas”. O coro das formiguinhas, no tema “A Formiga no Carreiro”, não é mais do que as vozes dos músicos aceleradas, de velocidade duplicada.
Acelerando, mal o sabiam, estava também o tempo. E ao virar da esquina estavam ares de liberdade.
Venham Mais Cinco seria, pois, o último dos discos de Zeca gravado e publicado nos interstícios da ditadura. Em 1974, a periodicidade de um álbum novo por ano ficava pela primeira vez ameaçada e cumpria-se no limite. A novidade era outra e exigia total dedicação."
Gonçalo Frota, Setembro de 2012
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Coro dos Tribunais
José Afonso 1974
Alinhamento:
01 – Coro dos tribunais 4!28"
02 – O homem voltou 3!47"
03 – Ailé! Ailé! 2!42"
04 – Não seremos pais incógnitos 1!42"
05 – O que faz falta 4!29"
06 – Lá no Xepangara 3!16"
07 – Eu marchava de dia e de noite (Canta o Comerciante) 3!11"
08 – Tenho um primo convexo 2!42"
09 – Só ouve o brado da terra 3!17"
10 – A presença das formigas 2!54"
11 – Coro dos tribunais (final) 1!23"
"Os dias maiores
Era fatal que assim acontecesse. Havia de chegar o dia em que o peso sobre as canções seria outro, em que cada verso não teria de ser descodificado e escalpelizado, não teria de camuflar-se para continuar a existir em todo o seu pleno sentido. Abril finalmente chegou e as canções deixaram de ter de ser uma arma e afinar a pontaria a um regime podre. Coro dos Tribunais, gravado em Londres no final de 1974, tornou-se, então, o primeiro disco de José Afonso a não depender de um aval escrutinador que tentava atabalhoadamente farejar incitações à revolta popular.
Desta vez, a direcção musical é entregue a Fausto, cujo encontro com Zeca parece fotocopiado da história vivida em Paris pelo seu antecessor, José Mário Branco. E conta-se assim: num dia quase igual aos outros de 1968, Fausto Bordalo Dias é avisado de que José Afonso se teria deslocado ao
Instituto Superior Técnico, em Lisboa, para mais uma das suas recorrentes sessões clandestinas, habitualmente à pinha graças à velocidade a que a palavra circulava das bocas certas para os ouvidos correspondentes. Ao chegar, completamente despreparado para o momento que se precipitaria na sua
frente, Fausto dá imediatamente de caras com aquele que era para si não menos do que um herói.
Mas ali, como o vê de repente, sem tempo para respirar fundo, Zeca Afonso é apenas um homem que vagueia pelo corredor de acesso à cantina onde vai actuar, caminhando sobre os seus próprios passos, as mãos enfiadas nos bolsos. “Parecia uma fera enjaulada”, recordaria Fausto à jornalista Felícia
Cabrita, em Novembro de 2011. “Ouvi-lo foi desconcertante, tinha uma voz belíssima”, acrescentaria.
Dessa primeira vez, o encontro é apenas o de Fausto com Zeca, corre apenas num sentido. Os dois só se conhecerão em Janeiro de 1973, apresentados pelo amigo comum António Pedro Braga, em nova sessão de sala a abarrotar, numa colectividade da Marinha Grande. “Foi depois dessa sessão
frustrada”, dirá Fausto na mesma entrevista, “que o António Macedo, ao saber que o Zeca estava de partida para Madrid – onde ia cantar na Universidade de Jornalismo – mas não tinha guitarrista, lhe sugere o meu nome”. Desse momento em diante, a viola de Fausto passou a suportar, amiúde, a voz
de Zeca.
Pouco depois, Fausto sucederia a José Mário Branco. Tudo terá começado a cerca de uma semana de “Grândola Vila Morena” dar o arranque para a Revolução dos Cravos, a 25 de Abril, quando Zeca (assim como Adriano, Yório Gonçalves ou Júlio Pereira) participaram, em Madrid, nas gravações do segundo disco a solo de Fausto, P!ró que Der e Vier. Mais tarde, no final do ano, Coro dos Tribunais marcava o regresso de Zeca a Londres, após a experiência de Traz Outro Amigo Também, em 1970.
Tradicionalmente um mercado muito protector dos seus músicos de estúdio, os sindicatos ingleses controlavam minuciosamente as fichas técnicas apresentadas para as gravações, impondo as suas próprias listagens de músicos profissionais disponíveis para cada um dos instrumentos. Acontece que
Coro dos Tribunais teria uma das instrumentações mais simples da discografia de Zeca Afonso, cuja universalidade (violas, percussões, teclados) punha claramente em xeque a participação dos portugueses. “Não queriam deixar o Vitorino tocar piano porque havia pianistas em Inglaterra”, lembra
Carlos Alberto Moniz. “Depois houve alguém, o Zeca ou o José Niza, que terá dito ao sindicato que era uma canção que só o Vitorino é que sabia tocar. Mas a música são só umas três notas…”.
Desconfiados, os ingleses chegam a pedir: “Nesse caso, escrevam a música”. Mas o lado português, “argumentos esfarrapados”, sorri Moniz, desculpa-se com a sua impreparação técnica para fixar a música em pauta. Perante a insistência na utilização de guitarristas, pianistas e percussionistas locais, Fausto faz uso de uma eficaz manobra de diversão, argumentando que se tratava maioritariamente de “instrumentos típicos portugueses que mais ninguém tocava”. “Os instrumentos eram de tal maneira tradicionais que eu tenho lá um solo de [órgão] moog”, ri-se Vitorino. “Era tudo construído in loco, mas atenção que tínhamos uma prática muito grande disso”. “Por vontade dos ingleses”, conclui Moniz, “ninguém de nós tinha tocado”.
Para Zeca, tal hipótese seria inadmissível. A ele, que sempre tinha privilegiado as amizades e os afectos às estritas qualidades musicais, pouco lhe interessava o frio profissionalismo que lhe ofereciam em terras inglesas. Em vez disso, embarcou com músicos e amigos (não necessariamente por esta
ordem) para Londres. Entre eles, Adriano Correia de Oliveira, garante de festa e boa-disposição dentro e fora do estúdio, e motivo de estupefacção para o técnico inglês, Bob Harper. Quando os ponteiros do relógio apontavam para as dez da manhã já Harper tinha o estúdio pronto, microfones montados,
equipamento ligado, e se encontrava sentado na régie à espera de arrancar as gravações. Mas os músicos chegavam a conta-gotas, desapressados, para desespero do inglês. E a meio de uma manhã de estúdio, recorda Moniz, “chega o Adriano Correia de Oliveira, que tinha vindo de Lisboa com um capote alentejano, e diz-nos "Let!s go everybody have a drink!!. Parou-se a gravação e foi toda a gente beber um copo”.
José Niza, representante da Orfeu que tinha o papel de “conciliar alguma desta loucura com as necessidades editoriais”, fixou também o anúncio por Adriano e Vitorino da magnífica descoberta de um sítio nas imediações do estúdio que vendia chouriço, presunto e vinho tinto e que passou a concorrer com os horários de trabalho. “Bem, vamos lá então ao chouriço e a molhar a goela!”, terá respondido Zeca perante tamanha revelação. “O técnico de som”, recorda Vitorino, “estava completamente extasiado com a falta de programa. Mas se ficava apreensivo com esta falta de programa, ficava deslumbrado com a qualidade da música”.
Na cabeça de José Afonso, as canções não paravam de bailar – por vezes sozinhas, outras formando par com novíssimas ideias. O certo é que havia sempre uma melodia ou um ritmo a acompanhar-lhe os passos, os gestos ou as palavras. Havia sempre uma canção a intrometer-se no que de mais
corriqueiro o seu dia podia ter. “A sua cabeça estava sempre activa, compondo. Numa viagem entre Santiago e Paris foi "O que Faz Falta!. "Eh pá! Pára, pega na viola. Onde está o gravador? Assim com esse acorde!. Ao chegarmos a Paris a canção já existia”, lembraria o músico galego Benedicto García
Villar.
Também já a caminho do aeroporto, onde iam apanhar o avião para Londres, após duas noites de trabalho intenso, Fausto recorda (no livro Livra-te do Medo, de José Salvador) “Tenho Um Primo Convexo” a tomar forma: “A Zélia ia a guiar e eu a tocar viola no banco de trás para ele acertar pormenores”. Curiosamente, confessa Fausto, é esta familiaridade com Zeca e Adriano que o aproxima da música tradicional portuguesa, ao mesmo tempo que Zeca caminha em sentido contrário, em busca da África onde Fausto nasceu.
Para Moniz, que antes gravara Eu Vou Ser como a Toupeira, a criação colectiva de Madrid, esta é uma experiência de estúdio inteiramente diferente. “Há uma unidade nos arranjos”, precisa. “Enquanto na Toupeira o Benedicto dá o cunho numa cantiga, eu dou noutra e o Niza noutra, no Coro dos Tribunais o
Fausto dá unidade às canções todas. É um grande músico e tinha as coisas muito bem organizadas. O papel dele era mais o de dar forma harmónica, porque o Zeca fazia dois ou três acordes com os dedos encavalitados uns nos outros”. De certa forma, reflecte Moniz, a missão do director musical era imaginar-se na cabeça e no corpo de Zeca. E interpretar: “Se o Zeca soubesse tocar isto ou aquilo, como é que ele faria?”.
Se Moniz era já um repetente, em Coro dos Tribunais dá-se a passagem de Vitorino Salomé dos músicos-amigos de palco para os músicos-amigos de estúdio.
“Dr. José Afonso canta baladas”. Foi com este anúncio afixado numa parede, a anunciar uma actuação na Casa de Pescadores de Olhão, que o curso da vida de Vitorino encontrou com estrépito o de Zeca.
O alentejano estava na tropa, numa escola de milicianos em Tavira, e seguiu com um grupo de companheiros para a sessão. “Desfardámo-nos e fomos todos a pensar que ia haver cacetada”, recorda. Chegaram um pouco mais cedo do que o previsto, esbarrando em Zeca com alguma dificuldade em afinar a guitarra. Um amigo de ambos construiu a ponte: “Este tipo aqui afina-te a guitarra”. O tipo era, já se percebeu, Vitorino. “Afinei-lhe a guitarra e ficámos amigos para sempre”.
Para Vitorino, Zeca (a par de Adriano) é o responsável pela “ruptura com uma música cheia de bolor”.
Em Portugal, quando Zeca desponta, impera o nacional-cançonetismo. “No Mediterrâneo, o tempo era dos cantautores à guitarra: George Brassens, Raimon, Zeca… E mais além, o Bob Dylan. Do outro lado era a guerra do Vietname, deste lado era França pós-Maio de 68, o regime franquista, o Estado Novo.
Só que a qualidade do texto e da música era altíssima. Era deslumbrante. Aquilo a que se chama agora mainstream era todo contrapoder”. E é nesse exercício do contrapoder que a opinião não varia um milímetro: uma noite com Zeca, voz e guitarra, era antes de mais um comício. Só depois um
concerto. “Ele tinha um verbo e um discurso muito adequado à agitação e à propaganda”, confirma Vitorino.
Sendo o primeiro álbum de José Afonso gravado e editado após o 25 de Abril, a composição de Coro dos Tribunais é, no entanto, integralmente anterior à Revolução. Da peça A Excepção e a Regra, de Bertolt Brecht, Zeca iria recuperar os temas “Coro dos Tribunais” e “Eu Marchava de Dia e de Noite
(Canta o Comerciante)”, compostos propositadamente para a primeira apresentação de uma peça do dramaturgo alemão em território português, a 23 de Agosto de 1966, pelo Teatro de Amadores da Beira, na moçambicana Cidade da Beira, onde então residia. A encenação destinava-se, na altura, à
comemoração de um feito académico coimbrão designado por “Tomada da Bastilha” (ocupação, pelos estudantes, de um espaço onde estava instalado o Clube dos Lentes). De África, Zeca traria ainda o tema “Lá no Xepangara” e “Ailé! Ailé!”.
A extensão política da arte de José Afonso levou naturalmente a que, neste período, o músico se questionasse sobre a necessidade e a validade das canções vindouras. Nesse sentido, revelaria mais tarde a José Carlos Vasconcelos: “Houve uma época, logo após o 25 de Abril, em que não tínhamos mãos a medir. Foi uma fase de expectativa, em que eu reflecti sobre o que devia fazer, se deveria ir para o ensino, se a minha função de cantante se justificava no novo processo que estávamos a viver.
Pus mesmo a hipótese de me afastar, porque cantores de origem popular seriam vozes muito mais representativas do que as nossas e o processo nos iria ultrapassar. O certo é que fui extremamente solicitado”.
O clima de descompressão era tão assumido que Zeca não resistiu a oficializar o resultado “musical” de algumas passagens pelos restaurantes da vizinhança. Carlos Alberto Moniz, Fausto, Adriano e o próprio Zeca aparecem, assim, creditados não apenas com os instrumentos correspondentes, mas
também com “gases e flatulências”. “Não se ouvia na gravação, mas na ficha o Zeca não perdoou e pôs os nomes”, revela Moniz. E com notável candura acrescenta: “Denunciou-nos a todos. Ele tinha de denunciar alguma coisa. Como era tão rigoroso no resto, pisou o risco a única vez na sua vida dizendo
quem eram os flatulentos do grupo”.
Os dias eram maiores, de ânimo, de horizontes subitamente alargados, de exaltação. E a passagem pelo estúdio em tal momento histórico havia que ficar devidamente documentada. Foi chamado um fotógrafo para tirar “aquela foto lindíssima no interior do álbum”, conta Vitorino. “Como estávamos muito
dispersos, sempre a conversar, o fotógrafo teve a ideia de pôr Mozart bastante alto. A gente acalmou-se logo. E ficámos todos com aquela expressão, de encantamento”.
Um encantamento por cada pequena vitória quotidiana e cada expressão mínima de liberdade. Pela primeira vez, os textos de José Afonso não tinham de ser submetidos à censura prévia. A palavra passara a não ter amarras. E a não ter de esconder-se atrás de uma linguagem figurada. A sua poesia
podia, enfim, assumir o gosto pelo surrealismo, sem outro propósito."
Gonçalo Frota, Setembro 2012
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Com as Minhas Tamanquinhas
José Afonso, 1976
Alinhamento:
1 – Os fantoches de Kissinger 2!37"
2 – Teresa Torga 3!51"
3 – Os índios de Meia-Praia 3!44"
4 – O homem da gaita 2!13"
5 – O dia da unidade 3!20"
6 – Com as minhas tamanquinhas 2!12"
7 – Chula da Póvoa 3!59"
8 – Como se faz um canalha 2!45"
9 – Em terras de Trás-os-Monte 2!06"
10 – Alípio de Freitas 2!54"
"Crónicas de um país efervescente
"Uma azinheira enorme, com uma sombra fabulosa, ainda à luz do dia, muitas cadeiras à frente e uma cadeira alentejana, pintadinha, encostada à azinheira para a gente pôr o pé". Foi este cenário que os dedos lhes apontaram quando José Afonso e Vitorino Salomé chegaram às instalações da Unidade Colectiva de Produção Muralha de Aço, no concelho da Vidigueira, Baixo Alentejo, e perguntaram "Então e onde é que a gente canta?". As respostas, já o sabiam com a passagem dos anos, podiam ser verdadeiramente insólitas. Mas já não eram surpreendentes.
A Muralha de Aço tinha sido ocupada por populares em Outubro de 1975, em pleno PREC, e foi por volta dessa altura que os dois ali se deslocaram. "Fomos cantar à entrada do médico", lembra Vitorino. "Era uma cooperativa muito poderosa, com muita gente, e a partir desse dia passou a ter um médico: o doutor Maldonado, das Caldas da Rainha. E recordo-me que o palco era ali – era a azinheira".
Nas suas contas pessoais de horas em concerto, muitas tinham-se amontoado até então em atrelados de tractores e em toda a espécie de condições de uma "escola muito dura", que calejara irremediavelmente os músicos. Mas Zeca Afonso nunca virou a cara, sempre entendeu a música não apenas como uma finalidade em si mesma mas também como uma extensão de reivindicações, conquistas, formas de luta e de exaltação. Tanto assim que, ao tornar-se praticamente impossível cantar em público nos últimos anos de ditadura, dedicara-se sobretudo a uma missão de agitação e
propaganda.
"Com o 25 de Abril, surgiu uma oportunidade enorme para chegarmos às fábricas, aos locais de trabalho, ir às aldeias onde havia comissões de moradores que estavam a fazer o seu caminho público, o seu fontanário, etc.", diria ao Se7e, em 1980. "Participei muito directamente nesse processo, eu e outros cantores que tiveram uma actividade incrível nesse aspecto". Na mesma entrevista, afirmaria que essa fase da sua vida ficara plasmada de forma clara no álbum Com as
Minhas Tamanquinhas, o primeiro a ser lançado com material composto depois da Revolução. Em "Chula da Póvoa", por exemplo, Zeca inclui uma quadra escrita por Miraldina, da Cooperativa de Santa Sofia: "Camaradas lá do Norte / Venham ao Sul passear / Cá nas nossas cooperativas / Há
sempre mais um lugar".
Muitos destes temas continuariam a integrar o seu reportório durante anos. "Alípio de Freitas" e "Os Índios da Meia-Praia" "não são inferiores às mais antigas", diria Zeca. "Simplesmente, o tratamento de estúdio e dos arranjos é que são talvez um pouco superficiais. A linguagem é mais directa, tipo
cancioneiro, narrativa popular ou coisa que o valha".
Após vários anos a gravar no estrangeiro, Com as Minhas Tamanquinhas é registado nos estúdios de Arnaldo Trindade na lisboeta rua de Campolide, em Maio de 1976. A actividade no ano quente de 1975 tinha sido de tal forma intensa que, pela primeira vez, Zeca Afonso não tinha lançado o seu
álbum anual. Os discos, perante a efervescência social e política do país, eram o que menos importaria na altura. A música tinha de estar na rua e não entre paredes.
Vitorino, cujo coração sempre acelerou em presença do anarquismo, guarda dessas sessões de estúdio a memória de terem sido "mais anarquistas ainda". A comparação faz-se, pela sua voz, com o álbum anterior, Coro dos Tribunais, o primeiro registado e editado no pós-25 de Abril. "Os técnicos de
som em Portugal estavam habituados a nós e pensavam como nós, de maneira que era muito mais louco", resume.
Às tantas, numa das sessões, Zeca vislumbra a necessidade de uma concertina num par de temas.
Moreno Pinto, o técnico do estúdio, pega no telefone e disca um número que saberia certamente de cor. Do outro lado, atende-o Quim Barreiros, músico popular que gravava igualmente para a editora de Arnaldo Trindade. "Era uma ou duas da manhã – que o Zeca gravava de noite, de madrugada",
recorda Quim Barreiros. "Um belo dia, tinha eu acabado de chegar do meu trabalho – eu trabalhava nos restaurantes típicos da cidade -, e recebo uma chamada do Moreno Pinto que me diz: "Olha, aqui o Zeca quer falar contigo!. E passou-lhe o telefone".
(Flashback/analepse: Afife, perto de Vila Praia de Âncora, alguns anos antes, data indeterminada. Num concerto semi-clandestino em que participa também o pai de Quim Barreiros, acordeonista do Conjunto Alegria, Zeca e Vitorino apresentam-se para uma actuação em que, ao contrário do que era habitual, é concedido descanso à palavra revolucionária. "Éramos só os dois", conta Vitorino. "Eu tocava concertina e o Zeca divertia o povo. Assim que começámos, o Zeca começou a cantar o "Vira de Coimbra!, que ele cantava maravilhosamente, e o público desatou todo a dançar, era uma
poeirada que se levantava… E então ele disse-me: "Vamos tocar só para dançar!. E assim fizemos".
Esta memória terá, porventura, acorrido também a Zeca ao ligar a Barreiros – o vira e a música brasileira (forró e baião) que o acordeonista adaptava adequavam-se especialmente a alguns dos temas do disco que então preparava.)
Partilhando editora e estúdio, a ligação entre Zeca Afonso e Quim Barreiros existia já, naturalmente, antes do telefonema. "Pertencíamos à mesma equipa e é lógico que a gente se encontrasse volta e meia nas instalações do Arnaldo Trindade", diz Barreiros. Entre alguns almoços e esses encontros
fortuitos, Zeca conhecia bem a música popular a que o músico se dedicava. Daí que, nessa noite, ao telefone, Zeca lhe peça: "Ó Quim, traga cá a sua gaita que estamos aqui em dificuldades, a ver se você dá um jeito nisto". E, assim, a concertina de Quim Barreiros deixou o seu rasto nos dois temas
de folclore de Com as Minhas Tamanquinhas.
O mesmo telefone serviria ainda para chamar aquele que, daí em diante, se assumiria como o principal parceiro musical de Zeca Afonso e ocuparia o terceiro lugar na sequência de (notáveis) directores musicais na sua discografia – depois de José Mário Branco e Fausto Bordalo Dias, anunciava-se a chegada de Júlio Pereira. "O Zeca estava a gravar o as Tamanquinhas e ligaram-me porque ele precisava de um guitarrista para tocar nos "Índios da Meia-Praia!. Não o conhecia pessoalmente até aí e foi essa a primeira vez em que toquei com ele. Ele gostou da minha maneira de tocar e tempos depois chamou-me de novo". Essa é a parte da história que, por agora, fica por contar. A reter, interessa que para o tema que se baseara na vida suspensa (à espera de deliberações superiores quanto ao seu direito à habitação) dos pescadores da aldeia perto de Lagos,
Júlio Pereira entra – para não mais sair – na música de Zeca Afonso.
Apesar de Michel Delaporte continuar a sua fiel na ligação a Zeca, em Com as Minhas Tamanquinhas abre-se espaço para um jovem percussionista português, Ramon Galarza – filho do maestro Shegundo Galarza. Então estudante do Liceu Francês, próximo do local onde estava instalado o estúdio, Ramon era movido por uma "enorme paixão pela música: passava os tempos livres no estúdio e já dava os primeiros passos como músico profissional". "Nessas instalações", conta Galarza, "tive a sorte e o prazer de me cruzar com diversos grandes artistas do nosso meio. Assim conheci o Zeca, pessoa extraordinária, de quem era grande admirador e que muito me honrou com o surpreendente convite para participar no disco".
Como frequentemente acontecia com Zeca Afonso, as circunstâncias mandavam mais do que a planificação e, momentaneamente privado do seu percussionista habitual, não deixou escapar Ramon – que, por aqueles dias, se encontrava no estúdio a gravar um outro disco. "Foi assim que ele me perguntou se gostaria de colaborar com ele, pois tinha-me ouvido tocar e gostara muito. Uma experiência que marcou muito um puto de 18 anos para toda a vida e deixou um enorme orgulho".
Valendo-se sempre sobretudo do seu instinto, também Ramon aprendeu a responder à direcção musical de Zeca – que aqui a assumiu, depois de a ter entregue a Fausto no disco anterior – com base na transmissão de intenções por meio de palavras ou de imagens: "Descrevia ambientes naturais que tinha conhecido, vivido e sentido. E também experiências pessoais. E sabia exactamente o que queria dos músicos". Dada a riqueza rítmica intrínseca à sua criação musical, o desafio podia, por vezes, ser particularmente exigente para um percussionista. Mas Ramon acredita que não havia uma insistência ou um pedido especial para reportar a África. "Sentia-se a grande influência africana, mas ele era uma pessoa aberta a outros mundos. Tudo era em função da temática de cada faixa".
Em "Como se Faz Um Canalha" – tema de mira fixada em Aventino Teixeira, militar do grupo maoísta MRPP -, por exemplo, é sobretudo o Brasil que se ouve na cadência rítmica e no fraseado musical de Zeca. E no espantoso ritmo bucal, que hoje, em tempos de hip-hop, se chamaria human beatbox,
mas que na altura trazia um sabor muito mais tribal e exótico.
No entanto, não eram apenas os ouvidos que estavam sintonizados com o mundo exterior. Os olhos também o estavam e o tema de abertura, "Os Fantoches de Kissinger", aniquila quaisquer dúvidas. "Ele era um observador de grande rigor do que se passava no mundo", reforça Vitorino. "O Zeca extravasava a observação local, porque sabia que aquilo que se passava aqui também disso dependia".
Com as Minhas Tamanquinhas, "um disco de crónicas, radical", chama-lhe Vitorino, possivelmente o seu melhor, achava Zeca, traria também "O Homem da Gaita", composta na ressaca do 25 de Novembro. Esta última, explicou Zeca a Viriato Teles, "é um conto popular, da região de Loulé, a que eu dei um desenho mais ou menos musical". "A parte falada", acrescentaria, "é o discurso do general Eanes, que como se sabe participou activamente no golpe. Na altura, as versões oficiais tentaram fazer crer que aquilo era uma tentativa de tomada do poder pela esquerda, o que é redondamente falso". "O Homem da Gaita", diria ainda, juntava duas realidades distintas: "de um lado a voz falível, conjuntural, do poder; do outro a voz tradicional, pura".
"Teresa Torga", por seu lado, tinha por base uma notícia publicada no Diário de Lisboa, sobre uma mulher que se despira enquanto dançava numa zona especialmente movimentada de Lisboa. Perante um repórter fotográfico que se apressara a desembainhar a máquina para registar o momento, os
populares que por ali estavam rodearam a mulher para proteger a sua nudez da sanha de terceiros.
Para Zeca, foi um magnífico gesto de um país tradicionalmente machista. "Em Terras de Trás-os-Montes", contaria o realizador Luís Filipe Rocha, no livro Livra-te do Medo, de José Salvador, surgiria por imposição de Rocha e de Francisco Fanhais depois de uma passagem pela miséria das minas da Ribeira e do contacto com os mineiros abandonados pelos patrões.
"Quando nos vínhamos embora, já noite", recordou o cineasta a Salvador, "um mineiro jovem contou-nos a intervenção da PIDE ali. Esse jovem dispôs-se a levar-nos a uma aldeia onde nos contaram a história da perseguição a um mineiro feita directamente pela PIDE e pelo capataz a pedido do patrão". Tão impressionados ficaram que Rocha e Fanhais terão fechado Zeca num quarto até que fizesse uma canção sobre o sucedido. Era já dia quando Zeca abriu a porta trazendo consigo "Em Terras de Trás-os-Montes". Horas mais tarde, ao cantar para as gentes que haviam inspirado "a canção que tinha acabado de fazer", a reacção foi "inimaginável".
Talvez mais do que qualquer outro, Com as Minhas Tamanquinhas é uma interpelação concreta de José Afonso aos tempos que então se viviam. Os episódios polvilhados pelo álbum, deixando de ter de atirar farpas sob uma capa de camuflados segundos sentidos, chamam abertamente os bois pelos nomes. A liberdade plena soa esplendorosamente, pela primeira vez, na obra de José Afonso."
Gonçalo Frota, Setembro de 2012