Em boa hora as temperaturas desceram: no clima de ontem, talvez não caísse tão bem a oferenda de Lena d’Água, o “Chá” fervido diretamente do seu mais recente disco “Tropical Glaciar”. Foi nas primeiras horas da tarde que o Coala recebeu o ícone do rock português, apresentando o sucessor de “Desalmadamente”, para um recinto ainda a meio gás. Sem problema; “deixa lá, tudo flui com calma”. “Isto de tocar à tarde tem uma graça especial, porque vejo todas as caras”: otimismo entre ponderações sobre ecologia (“Carne Vegan”), idadismo (“Grande Festa”) e, entre os demais… “Demagogia”. Uma artista capaz do raro feito de conseguir o uníssono, com um volume ainda modesto de pessoas, e temas separados por quase 40 anos: “Sempre que o Amor Me Quiser” (1984) e “Demagogia” (2019).

O domingo (1 junho) abriu com Bruno Berle e a sua MPB sensível e rica em texturas – ou não fossem os seus últimos dois álbuns intitulados “No Reino dos Afetos”. Uma brisa (não metafórica) correu por este segundo dia em Cascais, e foi então que chegaramos reforços caloríficos em forma de música: o toque de timbalão, o sopro de saxofone, a malha de cavaquinho; é “Muito Romântico”, a primeira canção do alinhamento de Xande de Pilares. Pisa o palco do Coala com o projeto “Xande Canta Caetano”: título autoexplicativo, destino improvável.
“Por incrível que pareça, eu achava que era do Roberto Carlos”, confessa Xande, “só para mostrar o quão distante estava do Caetano”. Muito pelo contrário, o público do Coala não está afastado, muito pelo contrário: é evidente que dentro deste cancioneiro se encerram histórias de milhares de brasileiros e não só. De “Reconvexo” a “Alegria, Alegria”, de “Queixa” a “Força Estranha”, Caetano está na ponta da língua do Coala, reinterpretado e rearranjado com – mais do que arrojo e espanto – sabor e solidez. O concerto de quem se tornou, para sua inesgotável surpresa, “amigo do seu próprio ídolo”, e está hoje “na mesma estrada defendendo a nossa música”. Mas houve também tempo para Xande cantar Xande, de quando era vocalista do Grupo Revelação, para um coro imenso: “Tá Escrito”, talvez nas estrelas.
Tal como Silva, no primeiro dia, o rapper Criolo esteve no princípio do Coala em São Paulo, e agora está no princípio da história do Coala em Portugal. Cascais foi no embalo do hip hop consciente com influências de reggae: leve, mas metódico, “parti[ndo] de uma posição apocalíptica”, como se ouviu o histórico Tom Zé dizer numa gravação. Da exposição da desigualdade (“Não Existe Amor em SP”) ou, sob um eufemismo com as personagens da banda desenhada Turma da Mônica, à dura realidade das crianças envolvidas no tráfico de drogas (o samba “Linha da Frente”), e exigindo várias vezes “o respeito ao imigrante”. Se o concerto de Criolo foi leve embora altamente cantado, ritmo certo para o fim da tarde, maior pujança era expectável do concerto conjunto de Timbalada e Afrocidade, o que se verificou.
O primeiro grupo – nome emblemático da cultura afro-brasileira – assume uma postura paternal sobre Afrocidade, também da Bahia, do estado de Camaçari. “Não significa que eu seja mais velho”, brincou Danny Denan, mestre de cerimónias de Timbalada, ao lado de Buja Ferreira, e a energia implacável seria um bom atestado. Foi com o êxito “Beija-Flor” que tudo começou, lançando-nos num rol de samba duro, participado sem quebras do público, passando pelo jingle “Água Mineral” e por vários temas de Afrocidade, liderada por Fernanda Maia, incluindo “As Mina para o Baile”. Uma cápsula de carnaval, onde a multidão foi convidada a fazer a sua própria roda, a dançar sem fim, e a dividir-se em dois lados e a trocar entre si. No Coala de Timbalada e Afrocidade, não só foi possível como foi imperativo.

A resistência estava testada, era hora de aplicar o teste final, para a performance magistral de Ney Matogrosso: tempo de botar o seu “Bloco na Rua”. Foi assim que intitulou a digressão com que anda na estrada desde 2019, em homenagem ao tema do histórico Sérgio Sampaio. O alinhamento compõe-se não de êxitos seus, mas da apropriação de outros clássicos: um cancioneiro a faiscar de tanta eletricidade, desde Rita Lee (“Jardins da Babilónia”) aos Paralamas do Sucesso, cujo “Beco” permite ver Matogrosso na sua postura definidora: levando a voz de contratenor aos picos, conversando com o trombone, fitando o público com um olhar de estranhamento, maravilha, terror, surpresa eterna.
E – por que não? – o seu acesso esporádico de diva, recusando-se a atuar enquanto não cortassem a máquina de fumo: “Não faz falta. Só vou voltar quando tirarem ela”, disse, desafiando a produção e sentando-se no aguardo – motivando o cântico “tira a fumaça!” por entre o público (e por lá se vê, ampliado nos ecrãs, um fã com a maquilhagem mítica, a preto e branco, de Matogrosso na fase Secos & Molhados, inspirada no kabuki, forma clássica do teatro japonês).
“Mesmo que Seja Eu”, de Erasmo Carlos, é outra prova de fogo: o grito triunfante do ícone e o delírio desenfreado do público. A cada momento, especialmente “Iolanda” (adaptação de Chico Buarque do cubano Pablo Milanés), a banda revela-se exemplar (e, aliás, notavelmente apresentada em voz-off antes do começo do espetáculo), sustenta e revigora cada tema. Quase no fim, são especialmente tocantes as reimaginações de “Sangue Latino” (esta sim, originalmente de Ney, nos Secos & Molhados) e “Como Dois e Dois” (tema composto por Caetano Veloso para Roberto Carlos e também imortalizado na voz de Gal Costa), com uma nova batida, com o poderio indisputável desta voz.
“Em tese, este show acabava aqui. Eu iria embora e vocês ficavam inventando de eu voltar”, anunciou quase no fim, propondo uma alternativa ao modelo do encore. “Eu não saio daqui e canto tudo o que [já] ia cantar”. Como nos dizia Silva, Ney Matogrosso mantém-se professor de uma “aula de liberdade”, o portador desse olhar de esfinge, o estremecer mútuo de prazer a cada nota. Tem muito mais em si do que apenas um gemido – e o que continua a importar, como sempre, é não estar vencido.
