O Público mostrou-nos este sábado o olhar de Robaika, a sudanesa de 25 anos que fita com uma beleza magoada a câmara do fotojornalista Thomas Mukoya da Reuters. Robaika segura o filho, 33 vértebras que parecem romper a pele e que dispensam todos os relatórios relacionados com a subnutrição das crianças nas mais críticas zonas de África.
O fotojornalista queniano Thomas Mukoya tem percorrido os campos de refugiados onde a ajuda internacional dificilmente rompe o fogo cruzado entre as tropas sudanesas e os paramilitares. A expressão “morre-se por um prato de lentilhas”, é a legenda crua do dia a dia dos campos da fome onde a lentilha é a base da alimentação, quando calha. E calha pouco.
Mukoya não é um abutre, é um fotojornalista que persegue a beleza de África, por mais magoada. Ele já nos mostrou a arquitectura modernista de Asmara, na Eritreia. E as crianças na escola da aldeia das margens do lago Vitória onde viveu a avó de Obama.
Talvez a mão que segura a câmara lhe tenha tremido, talvez o olhar se lhe tenha embaciado, diante desta mãe que segura contra o peito o filho cujos ossos quase rompem a pele. Não lhe ocorrerá distinguir as costelas flutuantes das verdadeiras ou das falsas olhando aquela criança pronta para a morte. A morte é já o outro nome da pele dos famintos do Sudão.
Na reportagem da Reuters que as imagens captadas por Thomas Mukoya enriquecem, alguém diz: “Há dias em que não sei se estou vivo ou morto”.
Tropas governamentais ou grupos rebeldes barram regularmente os camiões da ajuda alimentar, o óleo e as lentilhas que são o bife dos campos.
Robaika, a mãe que encosta ao peito o filho talvez moribundo, não nos dá a ver, da criança, o esterno, a cartografia ferida do tórax.
Já vos descrevi as omoplatas do filho de Robaika?
São tão salientes que criam a ilusão de um corpo transparente e tão desamparadas de trapézio. músculos e ligamentos, que tornam improvável a abdução do ombro, um gesto de adeus.
Esta imagem pede uma reflexão sobre a omoplata como aquela que Ferreira Gullar fez sobre um osso da própria perna, num poema de “Em alguma parte alguma”: “A parte mais durável de mim/ são os ossos/ e a mais dura também/ Como, por exemplo, este osso/ da perna/ que apalpo/ sob a macia cobertura”.
Robaika afaga com cuidado a clavícula breve do filho que segura contra o peito. Ela não pode ir apanhar ervas bravias com o grupo de mulheres que o fotojornalista Thomas Mukoya agora observa. As mulheres capinam as ervas bravias que em seguida vão cozinhar. Porque essas ervas bravias apanhadas do chão são o alimento base do campo.
Firmam-se nos quadris, nos ossos das pernas, as mulheres que apanham as ervas bravias do campo de refugiados. “O osso/ este osso/ (a parte de mim/ mais dura/ e a que mais dura) é a que menos sou eu?”
O filho de Robaika, película de pele tão fina sobre os ossos, transparente como uma radiografia. Como o olhar de um fotojornalista.