No fim de Agosto, um repórter do jornal “La Vanguardia” pôs-se à conversa com Alpha Issa, um rapaz de 14 anos que atirava pedras aos pássaros num dos arrozais do vale do rio Senegal, perto da aldeia de Guia, na fronteira com a Mauritânia. Lá nos arrozais à míngua de água, o rapaz Alpha enredou o repórter na arte de espantar pássaros, numa espécie de fascínio pungente. Isso explicará a beleza magoada do título da reportagem: “O rio dos meninos espantalhos”.
Pode um rapaz de 14 anos ter tal ofício, tal responsabilidade? Espantalho é, no caso, o oposto de paspalho. Os rapazes espantalhos defendem o produto principal da alimentação dos senegaleses, enfrentando as aves que, no ano passado, devastaram quase metade da produção de arroz do grande delta. Cada senegalês come 100 kg de arroz por ano. O Senegal vem aumentando a produção de arroz, mas está longe da autossuficiência, importando quase um milhão de toneladas, sobretudo na Ásia. Já te dou o arroz, ave agoirenta.
Quando li a história dos meninos espantalhos dos arrozais senegaleses, lembrei-me dos quadros de Cândido Portinari, dos mais de cem espantalhos que ele ergueu na tela para sacudir a solidão e, ao que dizem, um pesadelo de infância. Num desses quadros, uma ave agoirenta fuma cachimbo. Ide lá lançar baforadas para o arrozal de Alpha Issa, abutres do Senegal, e levareis para tabaco.
Em “Ritmo Dissoluto”, um livro publicado há precisamente cem anos, o brasileiro Manuel Bandeira tem um poema dedicado a outros oficiais de um ofício assombrado, os meninos carvoeiros. Eles passam, mordendo “um pão encarvoado”. E o poeta descreve-os, “bamboleando nas cangalhas como espantalhos desamparados”.
Os poetas imaginam, muitas vezes, ofícios de que estávamos à espera, mesmo que ainda não tenhamos para eles, ferramenta. Herberto voltou de África e escreveu em “Photomaton & Vox”: “Gostaria de ser um entrançador de tabaco”.
Manoel de Barros, o dos magníficos despropósitos, inventou um menino que “carregava água na peneira”. Com o tempo, o menino descobriu que escrever era um pouco parecido.
Lá no arrozal de África onde conquistou o seu posto de espantalho, sacudindo pássaros, Alpha Issa, o rapaz de 14 anos que maravilhou um repórter do La Vanguardia, talvez espere o menino do poema, para com ele aprender a arte de criar peixes no bolso.
O repórter vai pelo mundo. Encontrará alguém capaz de semear chuva?
Mas a resposta é sim. Em África, as crianças podem ser tudo, até soldados.
Texto e rubrica de Fernando Alves
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