Os repórteres das televisões movem-se por entre labaredas, cada vez mais dentro do fogo, como Héstias ou Hefestos que não mancam. Um dia, os mais afoitos saberão caminhar sobre brasas, para espanto daqueles a quem se referem como “os populares”. Os “populares” irrompem de um qualquer submundo letárgico para o esplendor mediático da oficina de Vulcano. Tirando uma forquilha ocasional, vão desarmados. Por vezes a expressão do seu desamparo é desarmante. Diante das chamas que avançam, eles são o coro mudo de uma tragédia. Os repórteres quase caminham sobre brasas.
O firewalking tem um calcanhar de Aquiles: transpira-se mais do que numa cama de pregos. Os “populares” constituem-se como versão mais aparatosa do vasto segmento que designamos como “as pessoas”. Quando não estão a acompanhar de perto os repórteres que se aventuram cada vez mais dentro do fogo, os “populares” estão entretidos com outras tarefas ou resguardam-se dos elementos e da sua fúria em lugares noutros tempos mais seguros. Comentadores e outros especialistas do entretenimento encontraram uma fórmula um pouco vaga para nomear esses lugares: “lá em casa”.
Ontem, estando “lá em casa” a acompanhar a angústia estupefacta dos “populares” no país do fogo, fui tocado pela ladainha magoada da mulher de Espigão. Ela levava o repórter junto às ruínas da igreja que ardera na véspera. Era a primeira vez que ela levava alguém à capela, agora em ruínas, sem precisar da chave. A voz da mulher, guardadora da chave da igreja de Nossa Senhora da Aflição, é um soluço silabado, um plangor desatado.
Entram, a guardadora aflita e o repórter, na igreja sem portas e sem tecto. Onde houvera uma fortaleza para os aflitos há agora uma aflição de cinza e escombro. A voz da mulher de Espigão parece prostrada em pranto, é uma dor lamuriada, uma grande aflição em inho. “Muitos vinham aqui pagar as suas promessinhas”, diz ela. E diz também: “Eu gostava muito desta santinha, aos domingos vinha aqui pôr uma velinha”. Está a aflição da mulher de Espigão assim desamparada, uma voz de repórter pergunta, já noutro canal, sobre imagens de uma nova frente de fogo, usando o título de um livro de Lobo Antunes que o fora buscar a Sá de Miranda: “Que farei quando tudo arde?”
“Desarrezoado amor/ dentro em meu peito/ tem guerra com a razão”.
Há momentos em que, mesmo se um céu de chumbo tapa o sol, “caem c’o calma as aves”. Nem tudo está perdido.
Entretanto, o jornal “Público” vem lembrar-nos que as equipas especializadas na investigação dos fogos agora anunciadas pelo primeiro-ministro já existem há três anos O despacho que criou tais equipas foi publicado em setembro de 2021 no Diário da República. Chover no molhado não corta o fogo pela raiz. E a ministra da Administração Interna, que dirá ela quando tudo arde? Margarida Blasco fez saber que falará depois do rescaldo.