A revista New Scientist já tinha dado como certo que o bodião limpador (assim designado porque dedica muito do seu precioso tempo a limpar peixes mais encorpados como a garoupa, na vizinhança dos corais) se reconhece ao espelho. A Folha de São Paulo contava ontem que o peixe bodião limpador, em havendo um espelho por perto (tomemos que num aquário), faz uma avaliação prudente sobre se deve ou não lutar com outro peixe, por mais escamado que este o tenha deixado. Fitando-se no espelho ele pondera antes de qualquer tentação de disputa. Na verdade, esta conclusão já tinha sido tirada por cientistas citados há uns anos na National Geographic. Mas vale como nova na justa medida em que contém um ensinamento para os humanos: eles deveriam fazer a avaliação do seu próprio tamanho e da condição mais ou menos musculada dos seus argumentos, antes de se meterem em alhadas.
O Pessoa acreditava que “o criador do espelho envenenou a alma humana” e pediu a Bernardo Soares que nos desassossegasse com a tese de que o homem não deveria poder ver a sua própria cara. Mas outro poema nos veio lembrar que ter cara é uma enorme responsabilidade.
Clarice Lispector, que tanto escreveu sobre espelhos, tinha outra perspectiva, firmando aliás a convicção de que o espelho seria, entre todos os materiais inventados, o único “natural”. Em “Um sopro de vida”, o último livro que escreveu, publicado aliás postumamente, partindo da constatação de uma “guerra invisível, entre perigos” ela concluiu: “Eu sou o meu próprio espelho”.
O jogo de máscaras que se vem tecendo na conversa de surdos sobre o Orçamento, de cuja aprovação depende, como sublinhou o presidente, o cumprimento de promessas feitas em campanha eleitoral, talvez peça que o encontro apalavrado para a próxima sexta feira, olhos nos olhos, entre o primeiro-ministro e o líder da Oposição, decorra numa sala forrada a espelhos, de tal modo que cada um dos intervenientes possa ver, no mesmo lance, o rosto do seu adversário e, talvez mais importante, o seu próprio rosto. Cada um fazendo, na sala de espelhos, o teste do bodião limpador.
No livro em que procura, numa escrita fragmentada, a mais íntima e secreta verdade, Clarice pergunta, em dada altura, “Quem vence”? E logo responde: “Eu sempre perco”.
É outro modo de sublinhar que pela boca morre o peixe. Ou pelo espelho.