Foi uma surpresa e ganhou forma há um ano. Depois de atuar no palco do Festival de Newport, a cantora Brandi Carlile pegou no microfone para falar com a plateia enquanto uma multidão de roadies ia enchendo o palco com microfones, bancos e um grande cadeirão ao centro. E a azáfama fez-se revelação quando, a fechar esse pequeno discurso, Brandi anunciou que, de regresso àquele festival, desde que ali passara pela última vez em 1969 ali estava… Joni Mitchell! Era o regresso, inesperado, sete anos depois de um aneurisma que a obrigada a um processo de longa e lenta recuperação que nem as recentes presenças públicas numa festa de celebração do seu próprio 75º aniversário ou nos Grammys faziam antever. Joni Mitchell estava de regresso a um palco, mas desta vez não o fazia nem para agradecer aos que a homenageavam ou para falar. Desta vez ia mesmo cantar.
Joni Mitchell at Newport é, agora, o documento desse reencontro. Começa precisamente com o discurso de apresentação por Brandi Carlile, passa pelo momento da revelação da (boa) surpresa e, depois, um alinhamento que passa por alguns dos seus grandes clássicos, aqui e ali acompanhando as canções com algumas palavras e histórias, traduzindo ali, à frente de todos, o que era um hábito familiar em sua casa: o palco não apresentava exatamente um concerto de Joni Mitchell, mas uma expressão pública de uma Joni Jam, ou seja, uma daquelas ocasiões em que, na sua sala, também sentada num cadeirão, uma das maiores cantautoras de todos os tempos junta amigos para cantar. Os alinhamentos costumam incidir nas suas canções mas incluem também as criações dos outros. E o que escutamos nesta ocasião com plateia pela frente não foi exceção, apresentando uma belíssima versão de Summertime, o clássico que nasceu no Porgy and Bess dos irmãos Gershwin.
O álbum, que representa a primeira edição de uma nova gravação de Joni Mitchell desde Shine (2007), apresenta um alinhamento que passa precisamente pelo tema-título desse disco e revisita Come In From The Cold (de Night Ride Home, de 1991), mas centra o seu tutano nas memórias clássicas dos inconformáveis Big Yellow Taxi, A Case of You e Both Sides Now e passa ainda por canções de álbuns como Court and Spark (1974) ou Hejira (1976) ou o ultra-aclamado Blue (1971). Traduzindo o modelo das jams caseiras, este momento captado em palco vive do diálogo e partilha das canções (e aqui Brandi Carlisle é a principal parceria da cantora veterana), sem contudo desviar o protagonismo da voz de Joni Mitchell, hoje mais grave mas não menos intensa, carregada de todo um quadro de novos sentidos que certamente deixaram arrepiada aquela plateia, num conjunto de sensações que a gravação de facto consegue captar e comunicar.
Assinalando o momento da edição de Joni Mitchell at Newport este episódio do Gira Discos escuta algumas entre as muitas versões que, ao longo dos anos, artistas das mais diferentes geografias e sonoridades foram criando a partir dos originais de Joni Mitchell. Aqui escutamos Cat Power em Blue, Tracey Thorn em River, James Blake ao som de A Case of You, Lana del Rey com a ajuda de Zella Day e Weyes Blood a dar nova forma a For Free ou George Michael a recriar Edith and The Kingpin. Anne Sofie Von Otter, voz com tradição no canto lírico, aborda aqui o clássico Marcie ao lado de Brad Mehldau, um dos mais aclamados pianistas de jazz do nosso tempo. Bob Dylan dá a sua voz ao célebre Big Yellow Taxi, canção que, na versão original de Joni Michell, está também na origem de Got ‘Til It’s Gone, de Janet Jackson com Q-Tip. A própria Joni Mitchell encerra o alinhamento mostrando como, também ela, re-imaginou as suas canções, mostrando como exemplo Judgement of the Moon and Stars na leitura apresentada em Travelogue no ano 2022.
Texto de Nuno Galopim
Ouça este e todos os episódios de Gira Discos na RTP Play. Para ouvir na Antena 1 de quinta para sexta-feira, depois das notícias das 00h.