Dezassete anos após a sua morte, cumpre-se hoje um século sobre o nascimento de Mário Cesariny. Ao longo do dia, na Antena 1, escutamos os seus poemas, ouvimos quem nos evoca a sua vida e obra e recebemos uma atuação ao vivo do grupo Os Poetas, que apresenta um novo disco a si dedicado. No seu centenário, relembramos aquele que é o nome maior do surrealismo português, uma figura cuja assinatura artística rima com a própria ideia de poesia.
Considerado um dos grandes mestres do surrealismo português, Mário Cesariny de Vasconcelos era filho de um beirão, negociante de joias, e de uma castelhana, professora de francês. Estudou no Liceu Gil Vicente e na Escola de Artes Decorativas António Arroio, para onde se mudou após frequentar o primeiro ano de Arquitetura na Escola Superior de Belas-Artes de Lisboa, tendo ainda estudado música com o compositor Fernando Lopes Graça. Mais tarde, viria a frequentar a Académie de la Grande Chaumière, em Paris, cidade onde, em 1947, conheceu André Breton. O líder do movimento surrealista exerceu sobre si grande influência, o que o levou a integrar, nesse ano, e ainda à distância, o Grupo Surrealista de Lisboa, formado por figuras como António Pedro, José-Augusto França, Cândido Costa Pinto, Marcelino Vespeira, João Moniz Pereira ou Alexandre O’Neill. O grupo surgiu com o intuito de protestar contra o regime político vigente em Portugal, mas também contra as poéticas neorrealistas dominantes. Porém, após algumas dissensões, Cesariny saiu e acabou por formar, mais tarde, o antigrupo Os Surrealistas, com Henrique Risques Pereira, António Maria Lisboa, Mário-Henrique Leiria, Fernando José Francisco, Carlos Eurico da Costa, Artur do Cruzeiro Seixas e Pedro Oom. Em 1949, o poeta e artista plástico escreveu com o grupo o seu manifesto coletivo, A Afixação Proibida, e participou nas I e II Exposições dos Surrealistas, polos de visibilidade de novos pintores, que foram no entanto ignoradas pela imprensa.
Adotando uma estética de contínua experimentação, Cesariny deixaria a sua obra ser guiada por esse princípio anárquico ao longo da sua vida, incluindo a sua produção poética, que considerava nascer desse desregramento inicial que movia a sua pintura. O artista encontra no movimento surrealista o “espaço de liberdade criativa, sem imposições estéticas ou morais, adequado à sua personalidade inquieta, polémica e contestatária”. Cada vez mais dedicado à escrita, o escritor publicaria as obras poéticas Corpo Visível (1950), Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (1952), Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (1953), Manual de Prestidigitação (1956), Pena Capital (1957), Nobilíssima Visão (1959), Poesia, 1944-1955 (1961), Planisfério e Outros Poemas (1961), Um Auto para Jerusalém (1964), As Mãos na Água, a Cabeça no Mar (1972), Burlescas, Teóricas e Sentimentais (1972), Titânia e a Cidade Queimada (1977) ou O Virgem Negra: Fernando Pessoa Explicado às Criancinhas Naturais & Estrangeiras (1989).
As características surrealistas estão já presentes em Corpo Visível, sendo marcas do estilo do autor o humor, o recurso ao nonsense ou a ironia por vezes violenta que visava mitos e figuras consagrados da cultural portuguesa e ocidental. Sobre a temática do surrealismo, que analisou em vários textos, escreveu ainda títulos como A Intervenção Surrealista (1958), Antologia Surrealista do Cadáver Esquisito (1961), por si organizada e parcialmente escrita, Do Surrealismo e da Pintura (1967), Primavera Autónoma das Estradas (1980) ou Vieira da Silva-Arpad Szènes, ou o Castelo Surrealista (1984).
Quando terminaram as experiências coletivas do que foi quase “um movimento (mais ou menos) organizado”, Cesariny prosseguiu sozinho, como sucederia com alguns dos seus outros companheiros que sobreviveram à aventura surrealista, com uma atividade incessante e orientada em várias direções. Depois de se ter dedicado à pintura de forma ocasional, concentrou-se nela, a partir de certa altura, de uma forma quase exclusiva, deixando de lado algumas facetas do seu talento. Começou por deixar de tocar piano, chegando depois a vez da escrita, sobre a qual dizia que “secou” e que deixara de ser necessária. Quando lhe perguntaram se não sentia necessidade de escrever, respondeu com assertividade: “Nenhuma. Para quê? A quem?”
Mário Cesariny destacar-se-ia no surrealismo plástico pelo seu “pioneirismo na introdução de novas técnicas, exploração de materiais e pela impregnação de humor, ironia, crítica, irreverência e drama”. Embora afastado dos grupos surrealistas, o artista continuou a desenvolver um percurso notável, assumindo um papel de impulsionador e promotor de diversas exposições em Portugal e no estrangeiro. O surrealismo representava para si “a realização total do nosso estado de espírito, a defesa do amor, da liberdade e da poesia”, sendo a sua obra, assim como a sua própria vida, um testemunho desse enorme vitalismo.
A sua obra poética constitui um dos mais ricos e complexos contributos para a história da poesia portuguesa contemporânea, tornando-se, após os primeiros ímpetos engajados, essencialmente uma “poesia do amor louco, desejado, vivido ou mal vivido, abandonado ou traído, cantado ou recordado e reinventado de forma elegíaca”. Declaradamente homossexual, o amor era para Cesariny um “desmesurado desejo de amizade”, no qual “o outro é um espelho sem o qual não nos vemos, não existimos”, e a “única coisa que há para acreditar”. De resto, Mário Cesariny definiu-o assim, de forma lapidar: “É o único contacto que temos com o sagrado. As igrejas apanharam o sagrado e fizeram dele uma coisa muito triste, quando não cruel. O amor é o que nos resta do sagrado.”
Texto de Nuno Camacho
O especial Cesariny 100 inclui três entrevistas de Pedro Miguel Ribeiro, com Afonso Dias Ramos (co-comissário da exposição “Castelo Surrealista” no MAAT), Perfecto Cuadrado (coordenador do Centro Português do Surrealismo) e Marlene Oliveira (diretora artística da Fundação Cupertino de Miranda).