Era uma vez uma jovem que, nascida em Paris a 17 de janeiro de 1944, resolveu transformar uma paixão pela música num eventual caminho profissional. Estávamos em 1961 e, depois de ter iniciado uma vida académica na Sorbonne, respondeu a um anúncio de uma editora discográfica que então procurava novos talentos… Ela, que recentemente tinha assistido, no Palais des Sports, em Paris, ao Premier festival international de rock, e tinha os nomes dos Everly Brothers, Cliff Richard, Brenda Lee ou Elvis Presley como pólos maiores nos azimutes de um gosto em formação, resolveu mudar o rumo da sua vida. Inscreveu-se então no Le Petit Conservatoire de la chanson, um programa de rádio em forma de concurso com expressão também na Televisão como “En attendant leur carrosse”, no qual se estreia em fevereiro de 1962. Por essa altura Françoise Hardy tinha já, desde há algumas semanas, um acordo assinado com a editora Vogue, pela qual se estreia em junho de 1962 com um primeiro EP em cujo alinhamento se encontrava a canção “Tous Les Garçons et les Filles” (com co-autoria sua). E o resto foi o que se sabe…
Assim quase do nada ascendeu meteoricamente à fama ao som dessa canção, que, de resto, seria o seu maior êxito global. Antes mesmo da eclosão do fenómeno yé yé e, na verdade, antes mesmo de “Love Me Do” dos Beatles, Françoise Hardy tornou-se figura maior de um novo mapa de uma emergente cultura jovem europeia e voz de grande popularidade em França ao ponto de, um ano depois da sua estreia, ter sido convidada pela televisão monegasca para representar o pequeno principado na Eurovisão (coisa que nasceu com uma bela canção, “L’Amour S’En Va”, mas acabou com discreta votação). Durante anos a fio desenvolveu um percurso frequentemente desenhado com canções da sua autoria, refletindo sempre mais afinidades pelos ecos que chegavam da cultura pop britânica do que face aos geograficamente mais próximos modelos da chanson francesa (nos anos 60 chegou mesmo a editar um álbum cantado em língua inglesa). O reconhecimento era então cimentado por sucessivos discos nos quais foi ensaiando e aperfeiçoando um trabalho autoral ao mesmo tempo que se tornava ícone de referência maior nas páginas de uma nova imprensa juvenil, exercendo um claro fascínio por músicos de outras paragens (Nick Drake seria um deles, precisamente numa viagem que fez a França em 1967).
Françoise Hardy tinha já seis álbuns editados quando, em 1967, definiu um novo modelo de trabalho para a sua música e aqueles que consigo trabalharam. Chegava então uma primeira tentativa de independência (que na verdade só ganharia expressão realmente efetiva um pouco mais adiante) mas que mostrava sinais de que à afirmação de identidade autoral havia em si um desejo de tomar igualmente firmes as rédeas do destino empresarial da sua carreira. Estava à frente do seu tempo, de facto. Musicalmente o disco que assinala esta primeira procura de independência resulta num jogo entre a continuidade face ao seu trabalho nos últimos tempos e a descoberta, então recente, daquele que seria um importante parceiro (na vida e na música): Jacques Dutronc.
Mesmo sem representar um momento de rutura face ao trabalho anterior, “Ma Jeunesse Fout le Camp” assinalou um momento de transição entre a etapa mais juvenil da obra de Françoise Hardy, abrindo então caminho a alguns dos seus melhores discos, entre os quais “Comment te Dire Adieu” (1968), “Soleil” (1970) ou “La Question” (1971). Gravou em inglês, mas também em italiano e alemão. Ao contrário de muitas outras figuras da sua geração sobrevivia assim ao fenómeno yé yé pelo vincar de uma personalidade que, tal como Serge Gainsbourg (com quem colaboraria), criou sólidas pontes de diálogo entre os universos da canção pop e a música francesa do seu tempo, tornando-se de resto numa figura de referência para muitos músicos franceses de gerações seguintes (entre os quais o reconhecido admirador Etienne Daho) e sendo uma das primeiras figuras a colaborar com Jean Michel Jarre antes mesmo deste ter conhecido o seu episódio inicial de sucesso internacional com “Oxygène”.
Em 1988, ao editar “Décalages”, anunciou ser esse o seu último disco, apontando pela sua frente um rumo focado na astrologia… Mas nos anos seguintes, depois de colaborar em dueto com os britânicos Blur numa nova versão de “To The End”, com o subtítulo “La Comedie”, e com Malcolm McLaren no álbum que o antigo manager dos Sex Pistols dedicou a Paris (também em 1994), estimulada pelo diretor artístico Fabrice Nataf e pelo cantor Etienne Daho acabou por aceitar o desafio de regressar aos discos. Encontrou nova casa editorial na Virgin Records e deu por si em estúdio ao lado de Alain Lubrano, guitarrista com quem havia tinha já trabalhado em “Décalages” e mais recentemente colaborado, ao dar voz a “Si ça fait mal”, uma das canções do álbum de estreia do músico, editado em 1992. Assim foi ganhando forma “Le Danger”, álbum que conheceria edição em 1996 e no qual surgiam 13 novas canções com letras da própria Françoise Hardy e música assinada não apenas por Alain Lubrano, mas também Rodolphe Berger (dos Kat Onoma) e Jean-Noël Chaléat (que em tempos acompanhara Claude François e Johnny Halliday). Retomou linhas temáticas já antes visitadas (a dor, o sofrimento) e, como a própria então explicou, olhou para os silêncios, os medos, as inércia, a manipulação… O som, em parte explicado pela equipa expressamente reunida para o atingir, apontava a uma vertigem elétrica mais intensa, revelando-se aqui o momento rock mais rugoso, pujante e, ao mesmo tempo, assombrado, de toda a sua discografia.
“Le Danger” representou o início de uma nova etapa de grande fulgor criativo que, nos anos seguintes, nos deu álbuns como “Clair Obscur” (2000), “Tant de Belles Choses” (2004), “Parenthèses” (2006), “La Pluie Sans Parapluie” (2010), “L’Amour Fou” e “Personne d’Autre” (2018), o seu registo final. Nesta última etapa juntou à sua obra (que antes contara já com um trabalho em paralelo no cinema) uma dimensão nova na escrita. Em 2008 publicou “Le désespoir des singes… et autres bagatelles”, uma autobiografia e, depois, livros como “L’amour fou” (um primeiro romance) ou os ensaios “Avis non autorisés” e “Un cadeau du ciel” nos quais refletiu sobre o envelhecimento e a sua hospitalização, em 2015, para combater um cancro. Em 2021 fez saber que a sua saúde se deteriorara. Disse então que não poderia mais cantar. Desejou a eutanásia e chegou mesmo a pedir ao presidente Macron para que a legalizasse em França. Deixou-nos, esta terça-feira, aos 80 anos.
Texto de Nuno Galopim
O “Gira Discos” desta semana é dedicado a Françoise Hardy — para ouvir no leitor acima, e também de quinta para sexta-feira na emissão de rádio.