O mundo estava, aos poucos, a mudar. Sem ter nunca tido aulas de música, sem ter passado por bandas, mas com uma relação feita com os discos e os microfones, com “escola” feita entre festas animadas por sound Systems, uma nova geração de DJ e rappers começara recentemente a reclamar para si um espaço com cada vez maior visibilidade no mapa da criação musical, contribuindo para a progressiva diluição de fronteiras entres os universos da música de dança, a soul, o hip hop, o som indie. É neste quadro de acontecimentos que, na primeira metade dos anos 90, a cidade de Bristol ganha particular notoriedade no mapa de transformações, com episódio determinante no clássico “Blue Lines” (1991) dos Massive Attack, banda que (com história ligada ao coletivo local The Wild Bunch) se tornou epicentro de referências e movimentações que, nos anos seguintes, chamaram atenções para outros seus conterrâneos, alguns deles seus colaboradores, entre os quais se contam figuras e bandas como Carlton, Tricky, os Earthling ou… os Portishead.
Vale a pena lembrar que Bristol é uma cidade britânica costeira com uma história musical marcada por grupos que tinham já sabido cruzar fronteiras (como o Pop Group ou os Rip Rig + Panic), mas também pelo viço de uma cultura reggae que tem origens num intenso relacionamento antigo com a Jamaica que se explica pela sua localização (que destacou uma vivência portuária) e consequente demografia. É precisamente neste terreno de cruzamentos de culturas, com África e as Caraíbas a juntar vivências que aqui ganham vida própria que, neste espaço e tempo emergem coletivos como Smith & Mighty, os Wild Bunch ou os Massive Attack, assim como as suas naturais descendências, familiaridades e parcerias. A “cena de Bristol” de que tanto se falava na imprensa musical nos anos 90, no fundo, não é senão uma natural expressão do cruzamento dos mais recentes sinais de evolução da cultura pop(ular) com as marcas de identidade do ponto no mapa onde tudo estava a acontecer.
Geoff Barrow, um dos três elementos de um novo projeto que entretanto começara a ganhar forma, tinha passado tempo em estúdio com os Massive Attack, então ainda sob o estatuto de aprendiz. Ali aprendeu a escutar novas texturas e ambientes que moldavam as canções que o mundo depois escutaria em “Blue Lines”. Os tempos eram mais lentos, as batidas pareciam estar sob o efeito de narcóticos, as cenografias eram elaboradas, os ambientes, desencantados… A expressão “trip hop” ganha então visibilidade nos textos que vão surgindo…
Num programa estatal de criação de empregos Geoff tinha entretanto conhecido Beth Gibbons, que o impressionou ao juntar a voz a gravações que ele lhe tinha enviado. O terceiro elemento chega na figura de Adrien Utley, que é desafiado a juntar guitarra a uma canção (que não era nada mais nada menos do que “Sour Times”) que então estava a ganhar forma, acabando a integrar o trio ao qual juntou credencias na escrita e na produção. Entre samples, batidas, loops e instrumentos que depois se lhes juntavam, um corpo de canções que, depois, eram entregues nas mãos da cantora, que então escrevia as letras e, no fim, as cantava, vincando a carga emocional numa arte final que então fixava cada uma das novas composições. Tons menores, ritmos suaves, como se fossem bandas sonoras para filmes noir inexistentes, expressavam afinidades e gostos naturais de cada um, cruzavando-se com os sinais dos tempos e as marcas de lugar (afinal, de todo um historial de experiências e vivências).
Aos poucos foram surgindo os episódios de revelação. Primeiro ao som de “Numb”, o single de avanço, em cuja capa se via um frame do filme “To Kill a Dead Man”, de Alexander Hemming. Depois seguiram-se “Sour Times” e “Glory Box”… E no final do ano não havia lista de melhores do ano que não referisse o álbum “Dummy” entre os maiores feitos de 1994. O disco ajudou a vincar um novo modo de pensar a construção de canções cuja arquitetura rítmica parte de ensinamentos colhidos no hip hop, ao mesmo tempo que a composição revela ainda sinais de depuração de várias, heranças clássicas, criando, pela arte do labor em estúdio, uma cenografia que serve uma voz desencantada, expressiva, arrebatadora.
Tal como títulos históricos como “Pet Sounds” (1966) dos Beach Boys e “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band” (1967) dos Beatles, o álbum de estreia dos Portishead também traduziu ecos de um momento de transformações, podendo ser encarado como mais um caso de mudança de paradigmas. Expressa, na sua identidade e história sinais de evolução nas tecnologias de gravação, ou seja, na relação entre as máquinas e os sons. Pequenas “imperfeições” como os efeitos da eletricidade estática ou do correr da agulha entre os sulcos do vinil, o ruído de fundo das cassetes áudio, são aqui integrados como parte da sonoplastia, ou seja, tornam-se, mais do que consequências do formatos físicos, material musical propriamente dito. A música, que aqui nascia entre visões que contemplavam (mesmo com ceticismo) o futuro, acaba por transportar em si todo um programa de memórias.