Não cuideis que me furto a dar ao pedal das palavras, acordei à costumada sirene das quatro da manhã, durante a tarde tinha tomado notas para possíveis ganchos desta crónica, guardei links, como se diz, mas a notícia da morte do poeta António Cícero fez-me desistir dos ganchos imaginados, entre os quais avultava uma foto no Los Angeles Times mostrando apoiantes de Trump a orar de braço estendido, estranha maneira de orar, ora essa. Tratei de procurar na estante os livros do homem que também na morte aliou labor poético e dignidade. Cícero procurara em Zurique a almofada da morte assistida, rejeitando perder-se no denso nevoeiro de Alzheimer em que a sua cabeça mergulhara. Deixou uma carta: “O que ocorre é que a minha vida se tornou insuportável (…) Não me lembro sequer de algumas coisas que ocorreram não apenas no passado remoto, mas mesmo de coisas que ocorreram ontem. Excepto os amigos mais íntimos, como vocês, não mais reconheço muitas pessoas que encontro na rua e com as quais já convivi. Não consigo mais escrever bons poemas nem bons ensaios de filosofia. Não consigo me concentrar, nem mesmo para ler, que era a coisa de que eu mais gostava no mundo”.
E os livros do imortal da Academia? Encontrei um finíssimo, de nem sequer 80 páginas, intitulado “Porventura”, comprado há uns anos na livraria Saraiva no Recife e que dormia, ao alto, entre um Murilo Mendes e um Carpinéjar, mas que não incluía o poema Guardar que eu procurava e que dá título ao primeiro livro de 96. Devo tê-lo pousado noutro lugar, promovendo não deliberadamente uma desordem harmoniosa na qual sobrevivo sem gps. Súbito, diante dos olhos a colectânea organizada por Italo Moriconi, em 2001 com os cem melhores poemas brasileiros do século XX. Lá estão as mais altas fasquias dos amados poetas do Brasil, Bandeira indo embora para Pasárgada, João Cabral de Melo Neto tecendo a manhã, o Mapa e o Estudo para uma Ondina, de Murilo Mendes, o Poema Sujo de Ferreira Gullar, Adélia, Leminski, Haroldo de Campos, Carlito Azevedo, Manoel de Barrros. O poema de Cícero que eu procurara encerra a lista, vem na página 337, a última, chama-se Guardar. Peço licença para dizer dele apenas alguns versos. Se o escutardes, percebereis que não haveria modo mais justo de o guardar, agora que se perdeu no nevoeiro. Procurai, se vos aprouver, os versos restantes.
“Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la. /Em cofre não se guarda coisa alguma. / Em cofre perde-se a coisa à vista.” (…) “Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por / ela, isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela, / isto é, estar por ela ou ser por ela. / Por isso melhor se guarda o voo de um pássaro / do que um pássaro sem voos. / Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica, / por isso se declara e declama um poema: / Para guardá-lo”.