Folheio, de novo, em voz alta, o jornal Região de Leiria, lançando amarras à penúltima página habitualmente dedicada às histórias dos nossos mais velhos. Desta vez, decido ancorar na notícia da exposição que Carlos Santos, carpinteiro naval durante 60 anos, montou na sua garagem, na rua das Arribas do Mar, em Peniche.
O repórter fotográfico Joaquim Dâmaso mostra-nos as paredes da oficina do carpinteiro naval agora reformado: são como redes ao alto que, em vez de peixe, recolhessem pagaias, canas de leme, serrotes, furadeiras. Carlos explica à jornalista Joana Magalhães que nenhuma outra arte em que se trabalhe a madeira exige tantas ferramentas como a carpintaria naval. O homem cujas mãos são agora um mar calmo de onde poderiam zarpar navios alados tem sempre o mar diante dos olhos no seu pequeno santuário do bairro do Visconde. É o mesmo mar que fez soar o fragor da vaga durante a dura vigília de António Borges Coelho, preso em Peniche. “Sou barco abandonado / na praia ao pé do mar”, gritou, há muitos anos, o poeta para a carpintaria melódica de Luís Cília e a canção foi em ondas na voz de Adriano. Já Carlos talhava barcos nos troncos das árvores. Também através do seu coração, tal como no poema de Sophia, passou um barco que não para de seguir, sem ele, o seu caminho. Ele cuida de uma inumerável frota na angra da memória, no porto de abrigo da sua garagem diante do mar. Gravuras antigas, com motivos marítimos, repousam nas paredes como o peixe seco ao sol, nos paneiros.
Quantas árvores terão nascido para ser barco nas suas mãos? Em quantas talhou a sua arte curvilínea entre amuras e anteparas?
O velho carpinteiro naval olha-nos na doca seca de uma página de jornal enquanto explica suavemente a geometria que guiou, a vida toda, o seu formão. “O barco é todo torto”, observa. Por isso o seu ofício cuida de fazer nascer a curva no mastro maciço da árvore. “Do direito temos de fazer torto, é diferente de outras artes da madeira”, explica o carpinteiro naval.
E eu fico preso ao sereno olhar de Carlos Santos nesta página de jornal. As mãos dele estão pousadas num cavername encalhado. Ainda que, como ele assegura, apenas um carpinteiro naval permaneça activo em Peniche, imagino o mestre afagando o dorso de um pinheiro manso ou de um carvalho como quem acalenta um navio e o lança a todas as Berlengas do mar.