Ao ler, ontem, na edição electrónica de um jornal brasileiro, a notícia de que um zagueiro de um clube chileno morreu atingido por um raio durante um jogo de futebol, dei comigo a pensar no modo como o uruguaio Eduardo Galeano teria contado o caso, numa das suas crónicas.
Farei eterna vénia a Nelson Rodrigues, rendo-me à elegância estilística de Jorge Valdano e de Luís Freitas Lobo, mas Galeano comove-me como se, a cada parágrafo, eu estivesse regressando pela mão de meu pai ao estádio onde acredito ter visto um guarda-redes encostado ao poste, descascando e comendo uma laranja durante o jogo que decorria quase sempre na outra metade do campo. Essa cena acompanha a minha memória tomada pela névoa, nesses dias longínquos em que eu não poderia ainda saber que Germano, o nosso mais distinto defesa central, era um requintado melómano. Já Galeano andava pelos estádios do mundo na sua qualidade de “mendigo do bom futebol”. Ele o confessou, com singelo orgulho: “Ando pelo mundo de chapéu na mão e, nos estádios, suplico uma boa jogada pelo amor de Deus”. Quando acontecia bom futebol, ele agradecia “o milagre”.
Ontem procurei “O futebol ao sol e à sombra”, mas a lombada deveria estar escondida entre linhas, se posso usar a gíria futebolística. Pousei a mão pressurosa n’ “O Livro dos Abraços” que Galeano escreveu nos dias do exílio. Sempre que regresso a esse livro, estremece-me o coração. Fui folheando ao calhas e demorei-me na página em que Galeano recorda um jantar com Tomás Borge, em Manágua, nos dias em que os sandinistas eram frequentáveis. Borge era um dos da linha dura, chegou a ser ministro do Interior, há dele um livro de conversas com Fidel. Estavam, pois, à mesa. Galeano conta, n’ “O Livro dos Abraços”, que durante esse jantar o duro Borge pouco falou, raramente deixando de fitar o escritor.
Algum tempo depois, Galeano foi chamado por Borge para um novo jantar, desta vez, a sós. Terminado o jantar, o duro sandinista disse-lhe, sem rodeios: “Conta-me um filme”. Galeano desculpou-se. Que vivia numa pequena cidade onde não passavam filmes de qualidade. Borge insistiu. Que contasse. Um filme qualquer, mesmo que fosse antigo. O uruguaio contou-lhe um filme. E Borge: “Conta outro”. E pela madrugada dentro, Galeano foi contando filmes ao duro sandinista, só conseguindo livrar-se quando a manhã rompeu. Uma semana depois, reencontraram-se e Borge pediu-lhe desculpa. Explicou que gostava muito de cinema, mas não podia ir às salas. Galeano disse compreender, eram tempos exigentes, uma guerra em curso. Mas o duro Borge explicou-lhe que não, que não era esse o problema, que até tinha tempo. “Não posso ir ao cinema”, explicou o ministro sandinista da linha dura, “porque, no cinema, eu choro”. “Eu também”, atalhou Galeano. E Borge: “Claro. Percebi isso na noite em que jantámos. Quando olhei para ti, pensei: este é dos que choram no cinema”.
Não me peçam que vos conte o último filme em que chorei. Eu não saberia explicar-vos o modo como o deserto é contado em “Os Papéis do Inglês”. Peço-vos, apenas, de chapéu na mão, como um mendigo que gosta de desertos e que vai pelos dias como se o mundo não tivesse leste, nostálgico de um sul onde pudesse visitar pastores: sentai-vos diante da tela e esperai que ele chegue, montado num burro e que a voz amiga o saúde, o deserto em fundo: “Ruy Duarte de Carvalho, é uma alegria encontrá-lo nestes tão dilatados sertões”.
Não me peçam que vos conte, muito menos agora que me perdi da notícia lá atrás sobre o zagueiro travado por um raio no último jogo de uma vida breve.