Acabo de folhear os jornais da manhã, numa impaciência contida na minúcia, há breves títulos que acendem luzes nas palavras (como acontece com este belíssimo “um farol no nevoeiro” que transforma, na capa do JN, um jogo de futebol numa improvável soma de tantas artes), alinho estupefacções, o vaporoso recorte conceptual de um autarca dado a dispensáveis considerandos sobre despejos aos quais prefere chamar desocupações, como se a semântica fosse a caixa de toque dos problemas sociais mais sensíveis, o caso da mulher que fez 500 quilómetros para conseguir o divórcio porque as conservatórias estão em sobrecarga, as lágrimas amargas no último dia da Coindu, o estudante que matou à pancada um sem-abrigo que lhe roubara o telemóvel, tantas pontas soltas para puxar o fio da crónica, é Natal, é Natal, mas deixai que me demore nestas quatro páginas do Ipsílon, o suplemento do Público às sextas. O jornalista Sérgio B. Gomes conversa com o grande fotógrafo Nicholas Nixon de quem podemos usufruir, até meados de Fevereiro, uma importante exposição retrospectiva, no Centro Cultural de Cascais. E sublinha, no longo e tão importante percurso do fotógrafo norte-americano, aquilo que define como “uma declaração de amor às emoções transmitidas pelo rosto humano”. A conversa percorre toda a longa obra do grande fotógrafo, desde a série das Irmãs Brown até às imagens só possíveis devido à criação de uma absoluta cumplicidade. Nixon dá-nos a ver rostos que dizem a absoluta fragilidade da condição humana, a ideia mais despida da finitude.
“O que mais o fascina no rosto humano?”, pergunta Sérgio B. Gomes. E o grande fotógrafo: “O facto de ser um veículo para expressar muitos sentimentos; nenhuma outra parte do corpo ou as nossas palavras expressam o que sentimos tão clara e fortemente como um rosto”.
Aqui chegados, dada esta volta pelo labirinto das páginas dos jornais, já teremos respirado fundo para olharmos este rosto que parece olhar-nos de perfil na primeira página do Público. É o rosto de Giséle Pelicot, a mulher que enfrentou os monstros e nos devolveu a obrigação de um olhar limpo.
Este é o rosto de uma mulher devastada que recuperou muito mais do que a sua dignidade ferida, compelindo-nos a resgatar a nossa.
O rosto de Giséle, com as suas rugas profundas, com a sua beleza triste, não nos olha de soslaio, olha-nos de frente mesmo se Giséle pousa o olhar num lugar indefinido, algures fora da página. Oferece-nos a sua beleza triste, a beleza triste de uma pele lavada da mais insuportável fealdade.
É o rosto que nos fita, neste Natal. O rosto da mãe coragem. Pudesse Nicholas Nixon fotografá-lo. Na sua fragilidade, na sua grandeza.