O meu querido amigo Alexandre Maniés, nome maior do restauro de arte sacra em Portugal, a quem coube a coordenação do notável trabalho de recuperação da imagem do Bom Jesus de Matosinhos, uma das mais antigas em tamanho natural do Cristo crucificado em toda a Península Ibérica, enviou-me há dias a imagem de uma pequena ave que dele se aproximou e o ficou observando longamente. Trata-se de um pisco de peito ruivo, uma ave que parece gostar de se aproximar destas pouco fiáveis criaturas que nós somos ou que, pelo menos, disso não mostra receio.
Já testei, algumas vezes, nos jardins da Gulbenkian, os limites da proximidade tolerada por estas aves que parecem trazer ao peito um babete de penas em tons vermelho e laranja. Alexandre Maniés conta que o pisco exuberante e dócil permaneceu muito perto dele durante algum tempo, antes e depois de o ter fotografado.
Mas a fatia de leão da mensagem de Alexandre serve para me dar a conhecer uma pequena menina chamada Sofhy que tem uma página no Instagram onde assina Sofhyavaqueira. A menina é, explica o especialista em restauro de arte sacra, e pude confirmá-lo, uma grande comunicadora, com sorriso e palavras muito cativantes. Nas imagens que vi ela ajuda a eclodir dois ovos que estavam, há tempo exagerado, no choco. Com a ajuda de uma unha, numa operação delicada (quero dizer, cheia de delicadeza) ela identifica o lugar do ovo mais próximo do bico do pintainho preguiçoso e cria um pequeno orifício na casca, através do qual retira a cabeça do pintainho e, logo, o pintainho por inteiro. Depois coloca o pintainho debaixo da galinha sua mãe que o aquece e o alimenta). A menina executa com doçura diante dos nossos olhos esta operação a que chama cesária.
Alexandre observa deliciado e anota que a menina poderia muito bem ter inspirado um certo conto de Clarice Lispector, intitulado “Uma história de tanto amor”, do qual retira esta frase: “Era uma vez uma menina que observava tanto as galinhas que lhes conhecia a alma e os seus anseios íntimos”.
Aqui chegados, eu deveria sair de cena com um ponto final no fim da frase, agradecendo ao Alexandre Maniés ter feito por mim uma crónica de véspera de Natal. Mas o Alexandre acrescentou uma informação preciosa que abre a porta de qualquer galinheiro, quanto mais a pobre gaveta de um cronista de rádio. Escreve o meu amigo: “Na região onde vive, no nordeste brasileiro, decorre nesta altura uma subscrição, com compra de rifas, visando obter dinheiro que permita abrir um poço”.
Mais do que levar-me para dentro de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, o meu amigo dá-me corda para eu dar um sentido a esse poço a que Sofhy vai tirando a casca. Estará ela puxando água para matar a sede dos que a seguem no Instagram. Essa menina é um poço de histórias. Ao Alexandre Maniés e a todos os que escutam esta rádio desejo um bom Natal.