Quando ele chegou à varanda estávamos felizes porque se tratava de um reencontro e não de uma despedida. Nos trinta e oito dias em que não pudemos vê-lo à varanda, pudemos imaginar que teve sonhos agitados, que os pensamentos o levaram, sono dentro, pelo campo de flores amarelas de Van Gogh.
Algumas vezes tememos que não mais viesse à varanda, que nos sonhos agitados tivesse feito seu aquele chamamento em verso, “Vem, serenidade”, sobressaltado murmúrio de um poema de Raul de Carvalho que talvez o cardeal Tolentino tenha traduzido para ele. É um poema com Deus em maiúscula na escancarada casa dos homens. Nas noites em que não poderia ter vindo à varanda, varado por um estranho sopro do coração, ele terá revivido todo o tropel insano do mundo. Talvez tenha sussurrado, no mais escuro de uma respiração trémula, aqueles versos, “Vem serenidade / não apagues ainda / a lâmpada que forra / os cantos do meu quarto”. Ele disse-o de outro modo, no texto para o Angelus: “Tive a oportunidade de experimentar a paciência do Senhor”.
Não foi a primeira vez que as palavras deste homem embaciaram os meus olhos. Isso acontece sempre que ele, depois de nos alertar para a insanidade do mundo, espalha sobre nós palavras perfumadas de bondade.
Mas eis que assoma à varanda do hospital para deixar escapar um sentimento de fragilidade que nos fortalece: “Ainda não me parece real”, começa por dizer. É quando os seus olhos e as suas palavras pousam em Carmela, Carmela Mancuso, que ali veio, como todas as manhãs, para rezar por ele, trazendo um enorme ramo de flores. O Papa agradece à “senhora com as flores amarelas” que sempre levou flores e rezou por ele junto ao hospital, repetindo o gesto todas as noites na praça de São Pedro. Carmela Mancuso dirá aos jornalistas que isto acontece desde 2017, em todas as audiências gerais das quartas-feiras. Ela sorri com o seu braçado de rosas amarelas e nós podemos ver nesse sorriso a menina com flores pousando para Renoir.
Dentro da minha cabeça ressoam versos de Eugénio: “É uma rosa amarela./ Uma rosa de verão”.
Enquanto ele se demora um pouco mais na varanda, ocorre-me que o seu corpo cansado, aquele corpo de quem sabe e não esquece os outros nomes da rosa, de Hiroxima a Gaza, talvez ensaiasse uma dança lenta se a rádio subisse só para ele, na grande praça onde Carmela Mancuso sorri como uma menina sobraçando o bouquet, a “Rosa Amarela” de Heitor Villa-Lobos. “Olha a rosa amarela, Rosa / Tão formosa, tão bela, Rosa”.