O Código da Estrada proíbe expressamente que um veículo derrame óleo na estrada. Mas é omisso quanto ao despejo de patas de galinha, embora estabeleça coima considerável penalizando quem lance objectos para fora da viatura. Essa não terá sido, contudo, a primeira reflexão dos automobilistas que ontem foram surpreendidos com o desconchavo numa estrada na periferia da Figueira. Na zona de Gala, é preciso galo.
Qual o destino das patas de galinha, assim despejadas como um tapete com unhas no asfalto da estrada? Uma casa de petiscos onde seriam servidas, depois de refogadas com azeite, cebola e cabeças de alho picadas? Uma loja de macumba ou de outros rituais mágicos? Essa é matéria para repórter local, polícia de trânsito ou cronista varrendo o dia, pé ante pé.
O grande cronista Rubem Braga, ainda muito jovem estudante, aproveitou umas férias na quinta do tio Cristovão para tomar apontamentos que pudessem ajudá-lo numa composição que o professor tinha pedido sobre o amanhecer. Rubem contou mais tarde numa crónica que, chegado à quinta, tomou notas num caderno, sobre o que mexesse em redor: passarinhos, uma negra deitando milho às galinhas, uma vaca mugindo. Depois releu as notas e acrescentou “um burro zurrando”. Ele conta, na crónica publicada no Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, uns meses antes de eu nascer: “Fiz parágrafo e repeti o mesmo zurro, com advérbio de modo, para fecho de ouro: Um burro zurrando escandalosamente”. O professor não apreciou o advérbio, provocou aliás chacota geral na turma, mas, ao contrário do que temeu o autor, isso não mancharia a glória literária do cronista que já cantava de galo.
Também Ferreira Gullar se ocupou do galo “de alarmante crista, guerreiro medieval” que, no bulício cacarejante do galinheiro, “mede os passos e inclina a cabeça coroada”. Foi isso no livro “A luta corporal”, de 1954 e o galo, não tarda, vai morrer. Dentro do galo do poema “há um grito / fruto obscuro”. Mas, fora do galo, aquele grito é, conclui Ferreira Gullar, “um mero complemento de auroras”. Teria dado um belo final para uma composição sobre o amanhecer, desde que o professor não fosse o da escola de Rubem Braga.
Gullar também não se esqueceu das galinhas. Num outro poema, a galinha morta flutua no chão. Afinal, “nada perdeu. O quintal não tinha qualquer beleza”.
A galinha morta no poema de Gullar é como se dormisse. Um verso o proclama, aliás: “A galinha dorme”.
Já as centenas de patas de galinha ontem despejadas no asfalto, na periferia da Figueira da Foz, tal como as vemos na imagem recolhida pelo Diário de Coimbra, não inspiram, sequer, um verso que possa amanhecer a rotina de um mestre-escola. Pedem um artigo específico do Código da Estrada e dão trabalho escusado aos homens do lixo.