Neste dia em que Pepe Mujica faria 90 anos, o filósofo espanhol Santiago Alba Rico escreve, no El Pais, sobre os “velhos que morrem em plena juventude”. Sobre dois desses velhos dos quais nos acabamos de despedir e que tanto nos tocaram a partir de um lugar que nas palavras de Alba Rico se situava “no reverso da ruidosa hiperpolítica digital”. O Papa Francisco e Pepe Mujica, deles se trata, tinham em comum algo verdadeiramente raro que o espanhol define deste modo: “Quando falavam pareciam estar escutando”.
Uma das últimas mensagens de Francisco aos jovens reunidos numa Oficina de Escuta foi gravada em Janeiro. É um apelo a que escutemos: “Reparai nas pessoas à vossa volta. Elas não escutam. Ora, uma das coisas mais importantes na vida é escutar, aprender a escutar”. “Escutar”, dizia Francisco, “é mais urgente do que falar”. Na manhã de 11 de Maio, o novo Papa deixou um aviso junto ao túmulo de Pedro: “É preciso saber escutar”.
Mas pode uma voz escutar? Pode, claro. Na verdade, aquele que escuta, aquele que fez crescer em si a arte da escuta, escutando é já como se falasse. Não me lembro quem dizia que escutar bem é quase responder. É isso.
Políbio Gomes dos Santos, um poeta que morreu muito jovem e do qual nos perdemos, deu a um dos seus livros um título luminoso, “Voz que Escuta”. Lá encontramos o Poema da Voz que Escuta: “Chamam-me lá em baixo: /Voz de coisas, voz de luta. /É uma voz que estala e mansamente cala/ e me escuta.”
Estávamos na dobra da pandemia, o filósofo Santiago Alba Rico disse, numa entrevista, que, nos últimos tempos, “a autoridade política tornou-se tecnológica, a tal ponto que quem queira chegar a um público mais vasto tem de se tornar influencer ou youtuber. O problema é que as redes não são feitas para pensar ou para nos comprometermos, mas para reagirmos com as vísceras e com a
amnésia”. Ele acredita que as novas tecnologias nos roubam o corpo, que o nosso corpo passa a ser “um apêndice incómodo do nosso telemóvel e da nossa ligação à rede”. E, se nos roubam o corpo, conclui Santiago Alba Rico, “roubam-nos a possibilidade de prestarmos atenção. Ora, sem atenção, as coisas não têm valor”.
Quando estava na presidência, Pepe Mujica, um dos nossos dois queridos mais velhos que acabam de nos deixar usava um telemóvel preso por elásticos. O que o interessava era falar-nos, escutando-nos. A seu modo, tão sábio, tão tocante, repetia os versos de “Como se escuta a chuva”, o tão comovente poema de ”Octavio Paz: “Ouve-me como se ouve a chuva / sem atenção, sem distracção”.
Não há tão intensa conexão como a da atenção que convoca antes de mais o nosso corpo, os nossos sentidos, o nosso coração.
Nenhum outro adereço.
A nossa voz transportando o desejo da voz do outro.
A nossa voz assim posta à escuta.