Por vezes imagino que não morrerei sem realizar e apresentar na rádio um programa de prosas leves e música exclusivamente instrumental. Mas a música instrumental é um corpo estranho na rádio, ignorada quase sempre, usada como alcatifa para nela palavras tantas vezes de circunstância limparem os pés. Pode ser que, entretanto, morra um instrumentista ou calhe uma data redonda sobre o nascimento de outro, ou que um virtuoso nosso ganhe fora de portas um prémio de gabarito, nesse caso ouviremos todo o santo dia o seu movimento perpétuo, mas isso não nos levará a mudar de vida.
Vem isto a propósito de um novo festival anunciado para o início de Julho na Póvoa de Lanhoso e exclusivamente dedicado à música instrumental. O cartaz tem nomes irrecusáveis? Se tem. Tem Tó Trips, tem Manuel de Oliveira (o formidável guitarrista de Guimarães que, desde os dias longínquos da banda Mediterrâneo, pisou os grandes palcos do mundo e ainda recentemente nos deu “Entre-Lugar”, uma pérola em parceria com a violoncelista Sandra Martins e o acordeonista João Frade), tem Marta Pereira da Costa, grupos locais de percussão, instrumentos da terra, vontade de conversa no palco comunitário. O festival não cobra entradas e afirma-se como um lugar privilegiado para o encontro entre compositores e instrumentistas consagrados e outros acabados de chegar, numa homenagem à música instrumental que se faz entre portas. Haverá concertos nas ruas e nas praças da vila, foi declarada a intenção de envolver a comunidade, eis uma mancheia de razões para daqui fazer vénia ao autarca Frederico Castro, apesar de ele ter usado, a propósito do festival, a palavra
“disruptiva” que nestes pobres dias serve de calçadeira a torto e a direito, embora haja quem aprecie.
Diz-se com frequência, a propósito de uma qualquer iniciativa, de uma promessa de campanha, de uma declaração política ambiciosa, que se trata de algo meramente instrumental, visando uma dada estratégia ainda oculta. O que deve ser realçado sobre este festival de música instrumental é o facto de ele não ser instrumental, mas um fim em si mesmo, o da celebração dos instrumentos e dos instrumentistas. Eis uma razão maior para visitar Póvoa de Lanhoso, nos primeiros dias de Julho. Sendo razão maior não é a única. Por um lado, coincide com a instalação, lá na Póvoa de Lanhoso, de um polo de formação na área da filigrana. E acresce o bacalhau do Victor, na rua do Laranjal, e o mais antigo carvalho alvarinho da península ibérica, o formidável carvalho de Calvos, cujo porte talvez inspire Tó Trips, como se reunisse os Fake Latinos na Rua Escura e, brilhasse um sol doido sobre quem estivesse por perto, como se Júlio Pereira voltasse a Escrever o Sol, agora já no tal programa que talvez anteceda a minha morte, ou António Pinho Vargas reiniciasse a Dança dos Pássaros, ou nos sentássemos na Pedra do Sol das Danças Ocultas ou uma luz sublime incidisse sobre as mãos de Bernardo Sassetti compondo e tocando para Alice, o filme de Marco Martins.
Caramba, fiquei mesmo contente.