Podia ter-lhes passado pela cabeça a ideia de um passeio até ao parque dos antigos castelos de Valderas onde talvez lhes ocorresse visitar um surpreendente museu da arte do vidro que há por ali, mas preferiram procurar a lagoa que só existia já na memória difusa da sua adolescência. Acontece que a adolescência deles é um país muito distante, não apenas porque se trata de dois anciãos – 83 anos, o homem; 76 anos, a mulher – mas porque dentro da cabeça deles os mapas de Alcorcón e de Leganés são apenas labirintos de névoa. O jornal El Pais conta hoje que eles caminharam sete quilómetros em busca da lagoa que, afinal, já não existe e se perderam na mais inóspita terra de ninguém, em baldios entre vias rápidas e descampado, num chão inclemente a que o repórter chama secarral. Não me ocorre secura bastante em palavra portuguesa que o possa dizer.
Acontece que o casal de anciãos se perdeu, foi dado o alerta, a polícia teve de recorrer a drones para dar com eles muitas horas depois, desfalecidos, deitados na terra áspera. Vizinhos de Alcorcón (onde existe a maior percentagem de velhos da Comunidade de Madrid) lembram-se de ouvir falar de uma lagoa que ali teria existido há mais de 60 anos. Terá sido esse o Éden de dois adolescentes cuja memória é hoje um secarral.
Quando comecei a ler esta notícia lembrei-me de um poema de Drummond, intitulado “Lagoa”, incluído em “Fazendeiro do Ar”.
É assim: “Eu não vi o mar. / Não sei se o mar é bonito, / não sei se ele é bravo. / O mar não me importa. / Eu vi a lagoa. / A lagoa, sim. / A lagoa é grande / e calma também”.
Mesmo que, entretanto, a lagoa de Drummond tenha secado, ele não podia ver o mar. Era a sua condição mineira que o impedia, nesse tempo longínquo. Tal como não podia fazer um poema sobre a Bahia. Ele tem um poema em que fala disso, do quão imperativo foi para ele,
em dado momento, fazer um poema sobre a Bahia. Mas ele nunca fora lá. Mais tarde, anos volvidos, a Bahia passou a ser para ele “poema natural / respirável / bebível / comível / sem necessidade de fonemas”.
A lagoa que os dois velhos de Alcarcón procuraram até ao desfalecimento é uma Bahia que se tivesse evaporado, um mar que tivesse secado, como o de Aral. Mas permanecia nos seus pensamentos, como um recanto do Éden que fora o amor deles adolescente.
O repórter diz de outro modo: “Pode acontecer que eles tenham perdido memórias de curto prazo, que não consigam lembrar-se do que fizeram na tarde anterior ou do que foi o pequeno almoço, mas certas passagens do passado permanecem gravadas a fogo nas suas cabeças”.
Fico preso não apenas à sonoridade, mas à substância da expressão “passagens do passado”. Assim imagino aqueles velhos. O passado passando por dentro das cabeças deles até encontrarem a lagoa de um paraíso perdido.