O repórter Frederico Pinheiro recolhe no gravador o som da cana cortada por Mateus Magule, nos campos de Xinavane. É como se a catana servisse de percussão à voz magoada de Mateus Magule que responde ao repórter em língua xangana. “Auxene”, talvez tenha dito o cortador Magule quando o português o saudou nos grandes caniçais abraçados pelo rio Incomáti, a 80 km de Maputo. Talvez o repórter ainda não saiba, tal como eu não sabia, que o nome daquele lugar, Xinavane, dá ao lugar uma espécie de condão, de condição de gente: xinavane é aquele que espalha a notícia. Frederico é um xinavane. Tal como Magule, cortando a cana, espalha o açúcar para lá dos vastos domínios da Açucareira, a entidade tutelar daquela região de Moçambique. A cana que Magule corta (notável registo sonoro no gravador de Frederico Pinheiro) espalha notícia doce de açúcar, porque é plantada de novo, amarga vida a dos cortadores de cana, 50 anos depois das proclamações da Machava. Vida amarga, a dos trabalhadores da Açucareira. E a da mulher que não ganha o bastante para comer todos os dias. Pergunta o repórter: “Quanto consegue fazer por dia?”. “Não está fácil para fazer. Não estou a conseguir”, diz ela. “Às vezes durmo só com um chá”. Ela percebe que aquele microfone e aquele gravador podem espalhar o seu lamento até ao palácio do presidente e diz: “Papai Chapo, abre as portas do dinheiro”.
Mostra o esplendor da fruta que não consegue vender, o esplendor dos nomes tão saborosos de pronunciar, tão difíceis de vender. É como se os lamentos dela resgatassem da desmemória os versos de Craveirinha sensibilizando o “camarada Control” para que este deixe passar as “saborosas tanjarinas de Inhambane”.
E logo escutamos os catadores de lixo que tratam o repórter por pai, por boss, por molungo (outra designação de branco). O que que procuram? “Estou a procurar reciclado, pai”.
É como se, cinquenta anos depois da independência, eles estivessem reescrevendo o Poema do Futuro Cidadão, aquele poema de Craveirinha, “Vim de qualquer parte de uma nação que ainda não existe”.
“Todos nós temos um sonho”, proclama o catador de lixo no país onde seis em cada 10 crianças passam fome. “Qual é o seu sonho, Paulo?”, pergunta o espalhador da notícia. E Paulo, o que percorre a lixeira procurando plástico e garrafas: “Gostava de ser chamado de pai, um dia”. Paulo, como se catasse versos antigos de Craveirinha: “Tenho no coração gritos que não são meus somente / porque venho de um país que/ ainda não existe”. E o miúdo Abdul, apanhador de garrafas, um quinhão de 10 meticais por dia. E os outros que vão falar, numa desesperança cantante.
Crianças de Moçambique apanhando garrafas no lixo. Que mensagem escreveriam para enviar no dorso das ondas?