A televisão, que durante décadas foi o centro do mundo mediático, parece agora atravessar uma crise de identidade. As audiências caem, os formatos tornam-se previsíveis e o público divide-se entre o streaming e o scroll infinito das redes sociais. Vivemos, talvez, a era da Mid TV — a “televisão mais ou menos”, como alguns analistas lhe chamam.
Mas, afinal, quem tem culpa nesta história?
Audiência cobarde ou oferta tímida?
Para o ex-diretor do Channel 4, Alf Lawrie, o problema não está nos programadores, mas sim nas próprias audiências. Numa entrevista recente, acusou o público de se “acobardar” e de procurar apenas conteúdos fáceis, rápidos e descartáveis — do TikTok ao YouTube.
A provocação relança o debate: será que a televisão se tornou medíocre porque o público assim o quis, ou o público cansou-se porque a televisão deixou de arriscar?
https://www.yorkpress.co.uk/news/national/uk-today/25512473.ex-channel-4-boss-blames-cowardly-audiences-tv-decline
https://www.theguardian.com/tv-and-radio/2025/sep/28/cultural-snobbery-too-much-studio-rogen-house-of-the-dragon
Clima pouco simpático para os atrevidos
O ambiente não parece favorável à ousadia. Depois da polémica com Charlie Kirk, a Apple decidiu adiar a estreia de The Savant, série protagonizada por Jessica Chastain, originalmente prevista para setembro. A atriz reagiu publicamente com desagrado, denunciando um clima de censura e hesitação nas grandes plataformas.
Jessica Chastain zangada com o adiamento de “The Savant”: https://www.thecut.com/article/jessica-chastain-apple-tv-the-savant-postponed.html Elon Musk lidera frente contra personagem trans em programa infantil
Enquanto isso, Elon Musk — o bilionário que gosta de se colocar no centro das discussões culturais — usou a sua própria rede social para apelar ao boicote à Netflix, depois da introdução de uma personagem trans num programa infantil. A guerra cultural migrou, assim, da política para o entretenimento.
Elon Musk lidera frente contra personagem trans em programa infantil: https://www.theguardian.com/technology/2025/oct/02/elon-musk-netflix-trans-character-dead-end-paranormal-park
Publicidade em queda, streaming em alta
O dinheiro também está a mudar de ecrã. Segundo dados da Variety, a publicidade na televisão linear registou o terceiro ano consecutivo de queda, enquanto o streaming e as redes sociais crescem a ritmo acelerado. “Money talks”, como se costuma dizer — e, neste caso, a conversa está a acontecer noutras plataformas.
Publicidade em queda pelo 3º ano consecutivo na TV, Streaming cresce: https://variety.com/2025/tv/news/primetime-tv-upfront-advertising-dollars-decline-third-year-1236488495/
Notícias em fuga e a ascensão do vídeo curto
O Digital News Report do Instituto Reuters confirma a tendência:
- Os smartphones são hoje o principal ponto de acesso às notícias;
- As plataformas digitais ultrapassaram os media locais como espaço de informação comunitária;
- E o conteúdo de criadores rivaliza cada vez mais com o jornalismo tradicional.
- Pela primeira vez, as redes sociais ultrapassaram a televisão como principal fonte de notícias nos Estados Unidos — um marco histórico que ilustra a transformação global dos hábitos mediáticos. O vídeo domina, a confiança nas notícias continua baixa e a “fadiga informativa” mantém-se em níveis recorde.
Relatório Digital News do Instituto Reuters (2025): https://www.digitalnewsreport.org/
Portugal: entre o humor e a IA
Em Portugal, o panorama é distinto, mas também sintomático. Durante a pré-campanha das Autárquicas, o partido Chega no Montijo publicou um vídeo musical criado com inteligência artificial, que rapidamente se tornou viral… mais pelo embaraço do resultado do que pela eficácia da mensagem.
Por outro lado, o TikTok anunciou a criação de um Centro Eleitoral para fornecer informação fiável sobre o processo autárquico — uma tentativa de mostrar que a plataforma também pode ter um papel cívico, e não apenas lúdico.
Com a televisão tradicional a perder terreno e o streaming a normalizar a mediocridade, alguns críticos perguntam-se se não estará na hora de regressar um certo “elitismo cultural” — ou, pelo menos, de recuperar o gosto pela exigência.
Mas, como ironiza o The Guardian, na era do “IA slop” e da “Mid TV”, talvez já seja tarde demais: o botão de avanço rápido tornou-se a nova forma de crítica.
Recomendações:
O Álvaro Costa recomenda “The House of Guinness” (Netflix), “The Ed Gein Story” (Netflix), e um artigo da BBC sobre o Festival de Comédia de Riade.
A Kenia Nunes recomenda o novo podcast do Observador sobre as eleições presidenciais de 1986, “A Eleição Mais Louca de Sempre” e a nova publicidade do Merriam-Webster, que adota a gíria da IA para vender o seu “novo modelo de linguage com mais de 27 mil palavras”: um dicionário.