SINOPSE
O que pode uma fotografia de um rosto revelar sobre um sistema político?
O que pode uma imagem tirada há mais de 35 anos dizer sobre a nossa actualidade?
Partindo de um núcleo de fotografias de cadastro de prisioneiros políticos da ditadura portuguesa (1926-1974), 48 procura mostrar os mecanismos através dos quais um sistema autoritário se tentou auto-perpetuar durante 48 anos.
Depois de Natureza Morta – Visages d’une Dictature (filme galardoado a nível internacional e exibido em festivais
e mostras em cinco continentes), Susana de Sousa Dias volta a centrar-se na época do Estado Novo, utilizando um dispositivo cinematográfico inovador.
Numa altura em que a temática da tortura atinge uma nova actualidade a nível mundial, 48 leva-nos a reflectir sobre
o legado português nesta matéria e sobre as suas consequências nos dias de hoje.
"A IDEIA
A ideia surgiu-me quando estava a realizar o meu filme anterior, Natureza Morta (2005), que se baseia em imagens de arquivo da ditadura portuguesa.
O ponto de partida deste filme foi precisamente o conjunto de fotografias de cadastro dos prisioneiros políticos. Passei anos a pensar nestas fotografias, tive longas conversas com várias dezenas de ex-prisioneiros; portanto, não só a ideia para o 48 surgiu muito clara na minha mente, como quando passei à prática já tinha um longo percurso dentro da temática.
A realização do filme, no entanto, foi bastante complexa e obviamente muito pensada. 48 parte de um dispositivo aparentemente simples mas os mecanismos para o pôr em prática foram extremamente complexos.
O DESAFIO
O filme procura pôr o espectador a pensar no que foram os 48 anos de ditadura em Portugal, mas não só. A prática da tortura continua a existir hoje. Este tema é sempre actual e voltou a ter uma grande relevância após a guerra do Iraque, com a divulgação das fotografias e dos relatórios em que
as torturas praticadas são descritas. 48 parte do passado mas procura estabelecer essa ligação com o presente.
A EXPERIÊNCIA
Quando fiz o filme não estive a pensar no apelo emocional. São relatos muito emotivos, é verdade, são experiências muito pessoais e traumáticas, ou seja, é praticamente impossível ficar indiferente ao que se ouve no filme. No entanto, uma coisa é fazer um filme a pensar no eventual apelo emocional, outra, é fazer um filme que procure colocar o espectador
a pensar naquilo que acabou de ver e ouvir. Essa foi a minha intenção. Aliás, saiu um texto sobre o filme na revista francesa Images Documentaires, que achei interessante; diz que aquilo que o filme consegue é pôr o espectador
a "imaginar o invisível".
A RELAÇÃO
Eu trabalhei com cada ex-prisioneiro político na sua condição de pessoa, não de vítima. Há sempre uma conjugação de duas vertentes no filme, entre o percurso pessoal e íntimo dos ex-prisioneiros e o contexto político. Mas eu não os considero vítimas, no sentido mais estrito do termo. Obviamente que são vítimas de um regime, mas são simultaneamente resistentes e resistentes activos. Há um testemunho no filme que refere o "poder do prisioneiro".
Um dos exemplos que dá tem precisamente a ver a imagem de cadastro: não se podia fugir a tirar a fotografia, mas
a cara, a expressão que o prisioneiro colocava no momento de captação da imagem, era ele que a decidia. O rosto pode
revelar-se assim como o último bastião dessa resistência. Todo o filme se constrói de forma a ir para além da superfície das coisas (das imagens, das palavras), procurando revelar a sua complexidade intrínseca. E isto não se coaduna com estereótipos.
O SILÊNCIO
A ideia do filme é que o espectador veja a imagem e a veja ouvindo única e exclusivamente o testemunho da pessoa que nela figura. Os silêncios dão tempo ao espectador para ir reflectindo sobre aquilo que está a ver e ouvir, dentro
do momento do próprio filme. Se colocasse um narrador, estaria a conduzir a leitura do filme através da minha palavra.
Ora, há toda uma outra série de mecanismos que o realizador pode utilizar para construir um filme que não têm de passar obrigatoriamente pela palavra. Nos documentários históricos mais tradicionais é comum termos um narrador que nos conta a história, interpretando-a; um narrador que nos apresenta o passado como sendo um passado completo, fechado, que não admite dúvidas. Nesse tipo de filmes, a imagem aparece como ilustração dessa narração, não
é uma imagem autónoma, viva. 48 parte de noções diferentes do que é a história e do que é a imagem.
E procura, sobretudo, criar um espaço de pensamento para o próprio espectador.
O NOME
Um preso político é um indivíduo, mas é um indivíduo que faz parte de um corpo político constituído pelo conjunto de prisioneiros políticos de um determinado regime. As pessoas que eu entrevisto são apenas uma pequena parte das pessoas que sofreram às mãos da ditadura. Elas estão a falar em nome próprio (aliás todas são identificadas no genérico final) mas estão também a falar por todos. A não identificação no momento em que aparecem no filme tem precisamente a ver com isso.
A FORMA JUSTA
O que eu procuro quando faço um filme é que a forma se adeque ao conteúdo. Não vou utilizar modelos correntes, já testados e padronizados. Tenho uma ideia e para a concretizar tenho de encontrar aquilo que eu considero a "forma justa". Portanto, parto sempre para um trabalho de pesquisa, de reflexão e de experimentação. Daí aquilo que tem sido designado por "estilo invulgar e próprio". Posso dizer que gostaria que esta fosse de facto a minha assinatura: a procura de novas formas, formas justas de apresentar os assuntos tratados."
Susana de Sousa Dias