No dia em que comemora 80 anos, publicamos a entrevista integral do realizador a Rui Alves de Sousa, durante a sua participação no Lisbon & Sintra Film Festival (LEFFEST), em que a Antena 1 marcou presença.
Se tivesse mesmo parado de filmar em 2014, David Cronenberg já tinha um lugar no Olimpo do cinema: os seus filmes viscerais e controversos tornaram-se sucessos de culto e continuam a marcar as novas gerações, desde os impactantes Scanners e Experiência Alucinante até a O Festim Nu e Irmãos Inseparáveis, passando pela polémica de Crash e os mais acessíveis Uma História de Violência e Promessas Perigosas. A filmografia de Cronenberg é um mundo que não se esgota em três ou quatro títulos mais sonantes, e também tem alguns menos vistos que urgem ser redescobertos. Mas o realizador não se quis ficar por Mapas para as Estrelas, e voltou assim com um novo filme, Crimes do Futuro, que apresentou em Portugal a convite do LEFFEST. Foi o pretexto para um encontro em novembro passado no Palácio de Seteais, para viajar com Cronenberg pela sua obra, o significado de uma adaptação e as bandas sonoras, e não faltaram ideias nada consensuais sobre o futuro do cinema. É essa conversa que recuperamos hoje, dia em que o cineasta comemora 80 anos.
Antena 1: Há uns dias vi uma entrevista sua num videoclube francês. No início falou da forma como descobriu o poder do cinema quando viu A Estrada de Fellini. Quis depois procurar esse tipo de poder nos seus filmes? Porque alguns deles são igualmente emocionantes. Como M. Butterfly, algo subestimado.
David Cronenberg: Cada filme é um universo diferente. Eu não tenho, pelo menos de forma consciente, uma lista de coisas que tenho de fazer. Tudo se resume a dar vida a um projeto e às personagens, encontrar um estilo pessoal que realce o significado do filme… e todos são diferentes. Por exemplo, M. Butterfly foi baseado numa peça de teatro, Cosmopolis e Zona de Perigo em romances, e muitos dos meus outros filmes foram feitos com guiões originais. Todos vêm de sítios diferentes. Por vezes estou a fundir a minha sensibilidade com a de um escritor, como aconteceu com William Burroughs e O Festim Nu. Cada narrativa pede coisas específicas. A emoção é uma qualidade básica de qualquer drama, e os filmes são drama, de qualquer forma, mesmo que se possa experimentar. E alguns filmes são mais objetivos e distantes, como O Último Ano em Marienbad, que parece frio e clínico, mas mesmo nesse filme, debaixo disso há emoções fortes que se sentem. Mas é muito diferente de um filme que seja mais como uma novela ou um melodrama. É o que acontece naturalmente considerando o projeto. E varia com os atores: alguns são mais frios, outros mais emocionais e quentes. Como realizador é-se surpreendido pelas dinâmicas diferentes dos atores. É como eu vejo as coisas. De facto não tenho uma lista de coisas que devem ou não devem estar em cada filme.
Falando de adaptações, eu revi Crash depois de ler o livro, que é uma experiência inexplicável. A descrição pormenorizada do acidente, por exemplo, fez-me pensar como deve ter sido difícil adaptar aquilo para um filme. E na verdade o David conseguiu dizer as mesmas coisas, só que de uma forma cinematográfica. Se fosse uma adaptação fiel do livro, provavelmente não teria a mesma força.
A minha primeira adaptação foi Zona de Perigo, um romance de Stephen King. Eu percebi que para ser fiel ao livro deve-se trair o livro. Não é possível uma adaptação direta. Os dois meios são completamente diferentes, cinema e os romances, embora estejam ligados. Há pessoas que adoram o livro e acham que o filme é uma adaptação precisa. Mas na verdade é muito diferente. Dei uma ideia do tom do romance de forma cinematográfica, mas senti que muitos elementos do livro não resultariam cinematograficamente. Foi a mesma coisa com Crash. O livro é muito frio, clínico e metálico, e o meu filme é muito mais quente, com a luz e os corpos dos belos atores. Não se fica com uma ideia da beleza das personagens no romance. Não era o que J.G. Ballard tentou fazer, mas eu precisava disso para o filme, para que os espetadores pudessem ser seduzidos pela estranheza através da beleza do que estavam a ver. Essa é uma grande diferença. O filme tornou-se uma criatura própria, que foi a combinação da minha sensibilidade com a de Ballard. Posso dizer que tanto ele como Burroughs adoraram os filmes que fiz. Ballard defendeu o filme em Cannes em 1996, onde foi atacado por ser pornográfico. Um jornalista até teve a abordagem interessante de que eu tinha traído o livro: em vez de dizer que eu fui pornográfico, ele disse que eu não fui suficientemente pornográfico. E Ballard disse que achava o filme melhor do que o livro. É algo muito generoso de se dizer. Não sei se ele acreditava mesmo nisso, mas deitou abaixo o jornalista, que teve de se sentar e não conseguia dizer mais nada. Ballard adorava mesmo o filme. É a coisa estranha das adaptações. Não é como ir de uma linguagem para outra, o que já é suficientemente difícil. É mais difícil do que isso.
Estava a pensar na primeira adaptação para cinema de A Oeste Nada de Novo, de 1930, que é muito diferente do livro. A única coisa em comum é o espírito, o mesmo tom. E ambos funcionam muito bem, na minha opinião, claro. É esse espírito que tenta sempre trazer para uma adaptação?
Sim, é isso. É o melhor que uma pessoa pode esperar conseguir. Se for fiel ao espírito e feito de forma honesta. Mas nunca pode ser a mesma experiência direta, porque as duas coisas são muito diferentes. Há uma nova adaptação de A Oeste Nada de Novo, e estou muito curioso para a ver. Eu vi o filme original há muitos anos e ainda o tenho muito presente na minha memória.
Fiquei com a sensação de que, depois de lançar Mapas para as Estrelas em 2014, estava algo desiludido com o cinema. E, na conferência de imprensa do LEFFEST, Paulo Branco mencionou que o seu desejo de voltar a fazer filmes foi, em parte, motivado por ter estado neste festival há uns anos.
Sim, é verdade. Eu vim cá em 2017. A minha mulher tinha falecido recentemente, estivemos 43 anos juntos… e também sentia que, nessa altura, tinha perdido o meu amor pelo cinema. Tinha escrito um romance chamado Consumed e pensava que talvez fosse continuar a escrever. Não ia deixar de ser criativo, mas pensei que a parte difícil do cinema, que passa principalmente pelo financiamento e a distribuição, me fazia preferir a escrita de romances, trabalhar sozinho e escrever, e não ter de me preocupar com essas coisas. E na tentativa de me distrair da dor da perda da minha mulher, vim ao festival. O Paulo foi muito generoso, claro. E comecei a falar com outros realizadores, com o Abel Ferrara, por exemplo, que nunca tinha conhecido… e as pessoas foram muito simpáticas e compreensíveis. E é verdade que, talvez, a minha vontade de voltar ao cinema começou aqui… acho que provavelmente ele tem razão.
Está orgulhoso de Crimes do Futuro?
Nunca é uma questão de orgulho. Não é como ter orgulho de um filho ou algo do género (risos). Uma pessoa pensa antes se concretizou o projeto em todo o seu potencial, ou se fez o melhor filme possível a partir do conceito, do guião… e eu fiquei muito contente com a produção. Filmámos em Atenas e foi uma ótima experiência. A colaboração entre as equipas grega e canadiana foi muito próxima e entusiasmante, e continuamos em contacto com os nossos colegas da Grécia. Nunca tinha rodado um filme no país, e eu senti que tive o melhor elenco e equipa possíveis, e a tecnologia, a luz e a fotografia… tudo correspondeu às minhas expetativas. Então é o melhor filme que eu podia ter feito daquele material. E, nessa perspetiva, sim, estou orgulhoso (riso).
Há uma pequena história que contou numa entrevista há uns anos: acho que estava num debate com alguns realizadores, e um deles era Spike Lee, que salientou a necessidade de se ver cinema em sala, dizendo que era um sacrilégio ver o Lawrence da Arábia num telemóvel… e nesse momento o David, em jeito de brincadeira, disse que estava a tentar ver o filme no seu Apple Watch. Pensando nisto, porque é que, mesmo assim, Crimes do Futuro teve de estrear primeiro nos cinemas?
Honestamente, eu acho que já não é importante um filme estrear nos cinemas. A estreia de Crimes do Futuro em sala deve-se ao critério dos distribuidores de cada país. Ninguém sabe realmente como equilibrar a estreia em sala com a estreia em plataformas de streaming como a Netflix ou a MUBI, e e as coisas estão a mudar a cada semana. Acho que cada filme está a ter uma experiência diferente. Ninguém sabe ainda o rumo que as coisas estão a seguir. Eu sinto que o cinema está, basicamente, morto. Vão existir alguns cinemas especializados que ou vão passar filmes de super heróis, ou filmes muito obscuros e experimentais. E tudo o que ficar no meio vai estar no streaming. Acho que a junção dos confinamentos da pandemia da COVID-19 com a Netflix fez com as pessoas percebessem que podem ter uma experiência de cinema muito boa em casa, no seu iPad ou no seu telemóvel. Talvez não no seu relógio (risos)… mas quem sabe? Eu disse ao Spike: eu estou a ver o Lawrence da Arábia e vejo mil camelos, e consigo ver bem cada um deles. Foi a minha piada. Mas eu queria mesmo dizer isso, porque eu senti também que a experiência cinematográfica tem sido desvalorizada: tu vais a uma sala, as pessoas estão ao telemóvel ou a falar, tens de ver publicidade, a projeção é automática, e se alguma coisa correr mal, não te podes queixar a ninguém porque não há projecionista… não acho que a experiência de cinema seja como nos velhos tempos, quando tinhas salas enormes, Cinerama e etc,… não acho que seja triste, porque o cinema continua a ser cinema e vai sempre existir, mas é entregue de uma forma diferente. Apenas isso. Como realizador eu não mudei o meu cinema. Mesmo quando eu fiz filmes como Experiência Alucinante, há muitos anos, eu estava consciente que a maioria das pessoas ia vê-lo na televisão e não no cinema. E depois com o VHS, o laserdisc e todos os formatos de vídeo, sabia que o meu filme ia viver não nas salas, mas na casa das pessoas.
Mas essa falta de relevância do cinema em sala deve-se também ao próprio cinema? Porque mencionou o Cinerama, esse tipo de atracções criadas para combater a televisão, e que traziam pessoas porque davam uma experiência que era impossível em casa. E hoje não temos algo assim…
Há algumas salas IMAX, mas não é o mesmo… foi por causa disso que se criou o Cinemascope: Hollywood tinha medo da televisão no seu início. Houve até um tempo em que os estúdios de cinema não permitiam que os realizadores mostrassem pessoas a ver televisão! Mas depois eles perceberam que podiam fazer mais dinheiro com a exibição televisiva dos filmes. De repente, os estúdios começaram a gostar muito da televisão, mas dessa competição inicial saíram coisas como o som estereofónico e o ecrã panorâmico, para dar às pessoas uma experiência que não podiam ter em casa. Claro que isso era fácil quando os televisores eram ainda a preto e branco e com som mono, porque com as TVs OLED de hoje podemos ter uma experiência fantástica de cinema em casa. Não podemos ter uma sala cheia de pessoas, mas acho que isso foi exagerado. O Spike falava do cinema ser a catedral da comunhão, quase como se fosse uma coisa religiosa em que as pessoas estão a experienciar coisas juntas… bem, às vezes tu estás numa sala e há um momento em que acontece algo espantoso no ecrã, ou um momento cómico e ouves o riso de toda a gente, mas se não pensarmos nessas coisas, também sei que os mais novos juntam-se para ver cinema, até num iPad! Por isso não é como se tivesse deixado de haver o aspeto social de ver um filme. Ele ainda existe, mesmo que não seja numa sala de cinema.
Mas antes da nossa conversa, o David estava a dizer ao Paulo Branco que gostou do Nimas, em Lisboa.
Porque é um cinema pequeno e muito intimista, mas é uma sala de cinema a sério. Estive noutras salas do festival que foram feitas para teatro ou concertos, e que foram convertidas para poderem exibir filmes, e às vezes o som não era o melhor ou a acústica era diferente, e o ecrã está no fundo do palco, e muito afastado dos espectadores. Quase que tens uma melhor visão do ecrã se aproximares um iPad da tua cara (risos). Ao menos o Nimas é verdadeiramente um cinema.
Falemos de música para cinema. O que é para si uma boa banda sonora?
Cada filme exige uma coisa diferente. E por isso é que eu tenho uma ótima relação com o compositor Howard Shore. Algumas bandas sonoras clássicas de Hollywood estão lá para acentuar o que já lá está. Por exemplo, se a cena é muito emocional, a música também o é. Se a cena for de ação ou suspense, a música acompanha também nessa direção. É a mesma coisa. Mas com o Howard, eu falo de outro nível de discurso, trazer algum elemento adicional com a música, não a mesma coisa amplificada. Isso também acontece com os efeitos sonoros, que são muito importantes, especialmente num filme como Crimes do Futuro em que temos máquinas que têm de ganhar vida, e parte dessa vida vem do som. Então eu pedi ao Howard para compor música que fosse mais efeitos sonoros do que música. E não se consegue dizer qual é qual. Há muitas coisas diferentes que se podem fazer, e temos ferramentas fantásticas para trabalhar os efeitos sonoros e a música. Até no som dos passos podemos escolher o peso ou o eco que têm… é possível dar tridimensionalidade ao que se vê no ecrã.
Provavelmente não consegue responder a esta pergunta, mas se tivesse de escolher um dos seus filmes pela banda sonora, qual seria?
Há muito tempo que eu não ouço, ou vejo, os meus filmes mais antigos, por isso não sei mesmo dizer. Talvez seja nesta altura Crimes do Futuro, porque estou mais atento a todas estas questões do som do que alguma vez estive, e penso que se quiserem um exemplo de um uso completamente emocional e algo escultural da música e dos efeitos sonoros, Crimes do Futuro é um bom filme para ver.
Uma pequena provocação para terminar: há uns tempos li uma entrevista ao realizador John Carpenter, em que ele dizia que o David se leva demasiado a sério. O que pensa disso?
(risos) Ouviste a minha reação, que é rir (risos). É interessante porque, aparentemente, o Quentin Tarantino lançou um livro [Cinema Speculation], onde diz que eu sou um dos poucos realizadores dos anos 80 que não se vendeu. Por outras palavras, ele está a dizer o contrário do John Carpenter, que é bom que eu me tenha mantido igual a mim próprio e que leve o meu cinema a sério. Eu adoro o John, e isto não é uma guerra (risos), mas há muito tempo, o Mick Garris, que era um amigo e também realizador, fez uma entrevista comigo, o John Carpenter e o John Landis. No fim os três estavam a olhar para mim de forma estranha. Perguntei o que se passava e eles disseram: Tu disseste que eras um artista. Falaste de ti como um artista sério. Nós nunca faríamos isso. Bem, mas eu sou um artista sério (risos)! Naquela época, em Hollywood, era considerado pretensioso pensares o teu cinema como uma arte, porque só estavas a fazer entretenimento, eras um song and dance man… E eu pensava em Bergman, Kurosawa, Fellini, e eles não pensavam nesses cineastas, só pensavam na cultura pop. Eu sempre me considerei um artista sério e levo-me a sério. Mas também acho que tenho um bom sentido de humor (risos). Aceito o comentário dele, e é obviamente o seu ponto de vista.