Se é verdade que o mercado cinematográfico português continua a estar marcado por claras limitações na divulgação de filmes que não emanam dos grandes estúdios (com evidente destaque para as chamadas “majors” dos EUA), não é menos verdade que a eclosão do cinema moderno ao longo da década de 1960 sempre esteve bem representada nas salas e, agora, no “streaming”. A boa notícia é que essa tendência prossegue, agora com a reposição, a partir do dia 22 de fevereiro, de nada mais nada menos que 11 títulos de Jean-Luc Godard (1930-2022) em cópias restauradas — o assunto foi tema da edição de 16 de fevereiro do programa “Duas ou Três Coisas”.
O período da Nova Vaga francesa surge em claro destaque, desde logo através de dois títulos que balizam a intervenção “godardiana” nesse processo criativo em que teve como companheiros gente tão ilustre como François Truffaut, Jacques Rivette ou Eric Rohmer. Poderemos, assim, ver ou rever a sua primeira longa-metragem, “O Acossado” (1960), e também “Pedro, o Louco” (1965), o primeiro reinventado as referências herdadas do cinema “noir” de Hollywood, o segundo encenando aquilo que podemos descrever como o capítulo final do romantismo clássico — Jean-Paul Belmondo é o actor destaque, acompanhado por Jean Seberg e Anna Karina, respectivamente no primeiro e no segundo filme.
Neste ciclo que começa em Lisboa, no Nimas, para depois surgir em ecrãs de todo o país, surgem também “Uma Mulher É uma Mulher” (1961), uma homenagem à tradição do musical, “O Soldado das Sombras” (1963), uma parábola sobre a política francesa, e “O Desprezo” (1963), porventura o título mais conhecido de Godard, reunindo Brigitte Bardot, uma das grandes “stars” da época, Michel Piccoli e o mestre do cinema germânico, Fritz Lang.
Isto sem esquecer que Godard foi também um experimentador das fronteiras da ficção científica, o que pode ser confirmado através de insólitas distopias, estranhamente poéticas, como “Os Carabineiros” (1963) e “Alphaville” (1965). As memórias da década de 60 encerram-se com “Made in USA” (1966), um policial que, para lá do desencanto político que precede Maio de 68, é também uma das mais originais explorações da cor no cinema de Godard, com a colaboração imprescindível do director de fotografia Raoul Coutard — é aí que encontramos a muito jovem Marianne Faithfull a cantar “As Tears Go By”.
O ciclo integra ainda três filmes dos anos 80/90 que podem funcionar como outros tantos testemunhos dos caminhos cruzados que Godard percorreu depois de maio de 68. Ou seja: uma diversificação constante de géneros e experimentações, desafiando a possibilidade da “morte do cinema” que, de alguma maneira, ele não deixava de reconhecer e lamentar.
“Nome: Carmen” (1983) e “Valha-me Deus” (1993) são exemplares desse desencanto: o primeiro refazendo o mito da Carmen, de Bizet, numa vertigem romântica que, paradoxalmente, tem como “acompanhamento” fundamental os quartetos de cordas do período final de Beethoven; o segundo envolvendo Gérard Depardieu numa intriga romanesca que, intimamente, funciona como uma interrogação da presença (ou da ausência) do sagrado no mundo contemporâneo.
No meio destes dois títulos deparamos com aquela que se pode designar como a grande revelação deste ciclo, uma vez que nunca teve estreia no circuito comercial português: “Détéctive” (1985), de novo uma belíssima revisitação da herança do “noir”, agora numa sociedade marcada pelos rituais do consumo e da concorrência desenfreada onde já não há lugar para heróis. O anti-herói dessa saga é o maior ícone da história francesa do rock’n’roll: Johnny Hallyday.