Com o seu característico humor disfórico e autodepreciativo, João César Monteiro fala das suas origens em termos que revelam desde logo a complexidade da sua pessoa: “Tive infância caprichosa e bem nutrida, no seio de uma família fortemente dominada pelo espírito, chamemos-lhe assim, da 1.ª República. Escusado será dizer que abundavam os dichotes anticlericais, muito embora o meu pai desejasse que eu viesse a seguir a carreira eclesiástica. Em suma: não se percebia nada. Pelo menos à primeira vista.” Depois de uma infância vivida na Figueira da Foz, onde nasceu a 2 de fevereiro de 1939, João César Monteiro veio viver para Lisboa aos 16 anos e tornou-se cineclubista. A partir dos anos 60, iniciou-se na crítica de cinema em jornais e revistas da especialidade, tendo também trabalhado como assistente de realização de Perdigão Queiroga no filme O Milionário (1961). Depois da morte do pai, e na qualidade de bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian, parte para Londres em 1963 para estudar cinema na London School of Film Technique. Regressado a Portugal, conhece em 1965 Paulo Rocha e os seus Verdes Anos, e Fernando Lopes e o seu Belarmino, referindo que se tomou “de amizade pelo Fernando e de amores pelo filme do senhor Rocha, cujos hábitos de anacoreta o tornavam pouco acessível”. Nesse ano, e após ter começado a tentar pôr de pé o projeto de Quem Espera por Sapatos de Defunto Morre Descalço, passou pela ingrata mas breve experiência de um internamento psiquiátrico, o que o faria dizer aos detratores que quiseram colar-lhe o rótulo de “louco” que o era até “de papel passado”.
Finalmente, em 1969, estreia-se na realização com um documentário de 17 minutos sobre Sophia de Mello Breyner, que concluiu antes de Quem Espera…, que andara em bolandas e que terminaria após dois anos de filmagens como média-metragem. Como ficaria depois claro em filmes como Veredas (1977) ou Silvestre (1981), César Monteiro dá continuidade à “tradição iniciada por Manoel de Oliveira (Ato da Primavera) ao introduzir no cinema português de ficção o conceito de antropologia visual, tradição amplamente explorada no documentário por outros cineastas portugueses como António Campos, António Reis, Ricardo Costa, Noémia Delgado ou, mais tarde e noutro registo, Pedro Costa”. E antes de criar o seu alter-ego João de Deus, que dará início a uma trilogia, ainda realiza À Flor do Mar (1986), com Laura Morante, naquele que é um dos mais belos e incríveis filmes do cinema português. Mas a personagem do mordaz João de Deus, interpretada pelo próprio cineasta, marca o início de uma nova fase na sua filmografia que faria de João César Monteiro o mais bem-sucedido e interessante caso de um realizador-protagonista da nossa cinematografia (uma espécie de Nanni Moretti lusitano). Com alguns laivos biográficos, Recordações da Casa Amarela (1989) foi em boa parte rodado no antigo Hospital Miguel Bombarda e, além de lançar o emblemático alter-ego, contava no elenco com atores que foram colaboradores habituais do cineasta, como Luís Miguel Cintra e a fabulosa Manuela de Freitas.
Com um sentido de humor absolutamente único, João César Monteiro era, como lembrou Margarida Gil (sua companheira), “intransigente mas também com uma grande sensibilidade”, realçando que era “sobretudo um poeta” cuja maior qualidade era a sua “capacidade de resistir à adversidade”. Sobre o seu método de trabalho, a também realizadora recorda a sua abordagem “não diretiva” em relação aos atores, sublinhando que se tratava mais de “uma relação de cumplicidade do que dirigir o ator” e que o cineasta “era muito tímido e não se sentia à vontade com equipas grandes”. Mas a sua fama de iconoclasta, irreverente e “extravagante” não era de todo linear nem simples, tendo em conta que tinha uma “personalidade complexa”. Aliás, quando confrontado por uma jornalista, numa entrevista em 1997, com o facto de ser “muito mais lúcido do que parece”, João César Monteiro respondeu, com toda a sinceridade: “Toda a gente que me conhece sabe isso. De maluco tenho muito pouco.”
Daí que o caso de João César Monteiro no panorama do cinema nacional seja único, para o bem e para o mal. Para o mal porque talvez seja possivelmente o cineasta português mais injustamente ostracizado (porque muito incompreendido) e, sem dúvida nenhuma, o mais olimpicamente subestimado. Mas sobre as conhecidas “polémicas” do realizador, por vezes mais mediatizadas do que os próprios filmes (como sucedeu em torno de Branca de Neve), disse, em sua muito legítima defesa, o produtor Paulo Branco: “Não é uma questão de ser justo ou não. Essas pessoas medíocres que julgam o João César Monteiro pelas suas polémicas, e que nem sequer tiveram alguma vez a curiosidade de ver um filme seu, nem as considero. Acho triste, mas é um reflexo, infelizmente, de muita coisa da nossa sociedade.” Porém, a quem quis com má-fé, maldade e ignorância reduzi-lo a uma figura “anedótica”, focando-se na espuma dos dias, o cineasta, que aos 20 anos se confessou “sempre heroico” e “de peito exposto às feras”, sempre ripostou, mesmo que “zurzido por acidentes e disparates da vidinha”, nunca lançando “a toalha ao tapete nem se acomodando ao repouso do guerreiro”.
Até ao “soberbo” Vai e Vem, o seu derradeiro filme, estreado postumamente em maio de 2003, fora da competição do Festival de Cannes (onde a crítica o considerou “a obra-prima de um dos maiores cineastas mundiais”), João César Monteiro realizou 22 filmes, entre longas e curtas-metragens. Presença assídua nos melhores festivais internacionais, ganhou dois importantes prémios no Festival de Veneza – o Leão de Prata de Melhor Realizador por Recordações da Casa Amarela e o Grande Prémio do Júri pelo genial A Comédia de Deus (1995). O realizador foi também escritor, tendo a partir de 2014 começado a ser publicados, com coordenação do já falecido Vítor Silva Tavares, os cinco volumes de Obra Escrita, que reúne todos os seus textos, guiões de filmes, críticas de cinema e correspondência. Exemplo de “seriedade na comédia”, é hoje saudado por uma nova geração que se sente inspirada pelo “perfume” que emana da sua obra, como disse o jovem realizador Diogo Baldaia. Já a dupla de realizadores André Santos e Marco Leão realça que “faz imensa falta um cineasta tão acutilante quanto ele foi, alguém que diga as coisas sem rodeios, porque a liberdade de João César Monteiro não acabava nos filmes, prosseguia na vida real”. Por isso, e contra todas as redutoras “caricaturas” que não fazem justiça a um homem complexo, saudemos também a memória do realizador, desaparecido há precisamente 20 anos, com um efusivo salve, César!