É uma escola que escapa ao padrão. Não tem carteiras, nem uma cadeira onde o professor pouse o casaco, ou mesa onde espalhe livros, ou cadernos, ou testes, onde possa pousar a pasta. Pelo que se percebe na foto do jornal El Pais, a sala é muito acanhada, há um armário fechado, não parece sequer um armário de sala de aula, antes parece um armário de guardar roupa, podemos imaginar que lá dentro estão penduradas camisas, as persianas estão corridas para que não se veja da rua o que se passa na quase penumbra da sala. E o que ali se passa é uma aula. Clandestina.
A reportagem de Trinidad Deiros Bronte dá-nos a ver seis adolescentes fotografadas de costas, sentadas no chão do quarto acanhado, as pernas entrelaçadas, as cabeças tapadas por eficientes véus. A professora esconde o rosto, debruçada sobre uma pequena tela onde escreve, junto ao armário dentro do qual imaginamos camisas penduradas, gavetas com meias, camisolas.
Lendo a reportagem ficamos a saber que uma daquelas adolescentes cujo rosto nunca veremos se chama Zahara. Zahara tem quinze anos. Ela diz: “Se pudéssemos ir à escola, eu estaria no nono ano. Quando os talibans encerraram as escolas, o meu mundo desmoronou-se. Não poder aprender tornou-se-me insuportável”.
Quando Zahara ouviu falar de uma escola clandestina para raparigas, correu os riscos que era preciso correr. A repórter calcula que haja centenas, talvez milhares, de adolescentes afegãs contrariando a regra que as impede de aprender, depois dos 12 anos. Uma dessas adolescentes, uma dessas estudantes clandestinas, explica porque decidiu correr o risco de aprender, de alargar o mundo, numa sala de persianas corridas, em quase penumbra: “É o único sítio onde vemos um futuro”. Ocorre-me chamar a esta assoalhada acanhada de onde seis adolescentes espreitam o mundo, o quarto do aprendimento.
Claro que estou a roubar o título de um poema de Manoel de Barros, do grande Manoel de Barros. Chama-se Aprendimento. E leva-nos a perceber o método através do qual o adolescente Manoel se apropriava do conhecimento, espantando-se com o modo como um só grilo “podia desmontar os silêncios de uma noite”.
As seis adolescentes afegãs, escondidas num quarto em penumbra, são os grilos desta história.
Escutai o que nos conta Manoel sobre o aprendimento: “Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles – esse pessoal. Eles falavam nas aulas”.
Naquele quarto transformado em escola clandestina, as seis adolescentes não podem conversar com Nadia Anjuman, a poeta afegã de quem Regina Guimarães traduziu para português “Flor de Fumo e Outros Textos”. Há tanto em comum entre elas. Nadia estudou clandestinamente na Escola da Agulha Dourada onde, sob o aparato de uma aula de costura, se aprendia literatura. Quando os talibãs foram derrotados, há 25 anos, ela saiu da clandestinidade e foi estudar para a universidade.
Aos 24 anos o marido matou-a à pancada.
As seis adolescentes desta escola clandestina afegã agora visitada pela repórter do El Pais têm muito futuro para ver através das persianas corridas de uma improvável sala de aulas. Que futuros maridos as espreitarão do lado de lá das persianas?
Texto e programa de Fernando Alves
