O ominoso atrevimento que vem do medo e da ignorância espalha no submundo digital a execração de uma mulher sábia e livre que ontem subiu à tribuna para nos lembrar que, tal como nos dias testemunhados pelo nosso poeta maior, figuras enlouquecidas podem atingir o poder.
Muitas dessas vozes, acolchoadas no medo do que, por atavismo ou negligência, não entendem ou, por iniquidade, recusam entender, jamais sentiram o apelo de uma só das 1.102 oitavas que compõem os Lusíadas. A mulher livre e digna que ontem subiu à tribuna, numa cidade rente ao mar, lembrou-nos que 22 dessas oitavas contêm “avisos explícitos” sobre a crise que se vivia no tempo do poeta, um tempo de transição, tal como este nosso de agora. O fim de um ciclo.
Maravilhamo-nos com as redondilhas daquele que morreu sem sequer um lençol cobrindo o seu corpo exaurido. Já não poderá a mão veemente de um qualquer frei José Índio, testemunha dessa ignomínia, ontem citado pela escritora, tapar de vergonhas o atrevimento que vergonha não tem de alarvemente revelar suas misérias.
É esse um sinal perturbador destes dias: a ignorância engrossa a voz e cerra os punhos; perdeu o ignorante a vergonha da ignorância, antes a exibe em voz alta, em arruaça, em demonstração de despeito.
E, todavia, eis-nos diante da inteireza complexa dos factos, a mais funda identidade na palma da mão, de tanta mistura feita, de tanta redondilha, de tanta variedade, em boa verdade. O que faz de nós “descendentes do escravo e do senhor que o escravizou”.
Nestes dias em que, como ontem lembrou uma mulher sábia, digna e livre, nos deslocamos “à velocidade dos meteoros”, cercados de “fios invisíveis”, sentimos o bafo de um “poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico”.
E a cidade, como reage, nos seus rossios, depois de tantas índias e de tantas áfricas, de tantas redondilhas? Escutai o que diz a mulher: “Os cidadãos são apenas público, que assiste a espectáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores. E os seus ídolos são fantasmas”.
Assim ligados por fios invisíveis mais do que pelas vozes do outro que somos e calamos em nós, cada dia mais seguidores e menos cidadãos, que lugar, pergunta a mulher na cidade da mais bela estátua portuguesa, que lugar ocuparemos adiante, como seres humanos? Ela pergunta: “O que passará a ser um humano?”.
Essa é, por certo, a pergunta central deste tempo de tantas sombras. Essa pergunta pede que cortemos os fios invisíveis e procuremos os versos daquele que, como ela disse, “nasceu e nunca mais morreu”. Ao menos as vinte e duas oitavas.
Obrigado, Lídia Jorge.