Um concerto de Bertrand Causse, o grande assobiador francês, está anunciado para o 11º Festival Internacional de Orgão de Braga. Será no início de Maio, ainda antes das eleições precipitadas pelas assobiadelas da Oposição ao governo e por múltiplos assobios para o lado. O assobio para o lado não é, ainda, uma figura regimental. Mas é um recurso tacticista, em sentido figurado.
Bertrand Causse é pianista, maestro, assobiador. A sua arte do silvo tem pauta exigente. Ele está anunciado para um concerto na igreja nova da vila de Prado, Vila Verde, um dos pontos altos do festival vinculado ao mote “O orgão e o sopro”. Ele é soprador capaz de assobiar Debussy. Ele é parente erudito do amolador de facas cujo assobio pode chamar a chuva. Betrand Causse e os amoladores estão no avesso dos assobiadores da política corrente, não apenas nas figuras de estilo: são diferentes no estilo das figuras que fazem.
Os actores da política corrente assobiam para o lado, com a manha bem apanhada numa canção de Carlão. A maioria não está necessariamente certa. Desse ponto de vista, o espectáculo de ontem no parlamento, nada dignificante, deixa claro o fastio com que de todas as bancadas foi ensaiado um assobio para o lado, sempre que se tratava de saber quem queria e quem não queria o desfecho a que se chegou. A poucos serve, todos lavam as mãos de uma táctiva assobiada com os pés. Quase todos assobiam baixinho o medo que dizem não ter.
O assobio para o lado é uma espécie de ui, não me diga. Um cantas bem mas não me alegras. Se um dos actores não encontra a fórmula inquestionável de passar à acção logo o acusam de estar cometendo um assobio disfuncional. “Montenegro não pode continuar a assobiar para o lado”, dizia, há uma semana, o secretário-geral do PS. Em meados de maio de 2022, quando era candidato a presidente do PSD, Montenegro disse a uma plateia de sindicalistas que o governo assobiava “para o ar”, revelando “insensibilidade social” à “inflacção galopante”. Assobiar para o ar é uma variante do assobio para o lado, porventura menos cautelosa quanto aos riscos da gravidade. De um modo ou de outro, algum caldo estará entornado quando as palavras são apenas ar comprimido pela abertura dos lábios. Vazias de sentido.
A sabedoria popular adopta fórmulas bem doseadas de sal e pimenta. Uma delas foi bem fisgada pelo Aquilino, numa passagem das Terras do Demo: “Fidalguia sem comedoria, é gaita que não assobia”.
Recomenda-se a suas senhorias a leitura, sempre proveitosa, de “Assobiando à vontade”, um breve conto retirado de “O Dia Cinzento e Outros Contos”, de Mário Dionisio. É a hora de trânsito mais complicado. No eléctrico apinhado, alguém pede que o deixem passar, que há lugares à frente. Trata-se de um homem de aspecto insignificante, chapéu coçado, barba por fazer. Finalmente sentado, o homem começa a assobiar baixinho, timidamente. Mas logo se galvaniza e o assobio enche o eléctrico. Há sinais de incómodo entredentes. Mas o homem assobia sem desfalecimento, as notas capazes de cativar um futuro Bertrand Causse, o condutor de mãos atadas por um regulamento que nao prevê qualquer sanção aplicável. E súbito uma menina, enfeitiçada pelo mavioso som, ensaia, ela também, um assobio suave. E logo a mãe, pauta severa: “Uma menina a assobiar, Nini!”.
O homem sai, numa paragem adiante. Todos respiram fundo, inspirando um estranho e inesperado apaziguamento. E o conto termina com a frase tumular: “Tudo, voltou, pesadamente, a encher-se de silêncio e dignidade”. É como o regimento e a pauta democrática, quando todos parecem assobiar para o lado enquanto brincam com o fogo.