Tinha recebido uma mensagem dos amigos da Almedina, estava à minha espera na livraria do Rato um exemplar do livro do padre Prévost que a Sistema Solar editara em 2014, com tradução de Anibal Fernandes. Não se trata de uma antiga incursão do novo Papa na ficção. Mas a coincidência de apelidos entre ambos relançará as atenções sobre este livro de um padre do século XVIII dado aos prazeres do mundo, em cuja prosa Cocteau pressentiu “um perfume libertino de pó de arroz, vinho na toalha e cama desfeita”. Lá fui ao livro e à conversa, sempre enriquecedora, com os amigos Edgar e Gustavo.
E Edgar contou este caso, sucedido no sábado. Aqui o partilho, devidamente autorizado.
Edgar vive em Vila Franca e vem diariamente de comboio para Lisboa. Há greve na CP, são 6 e 20 da manhã, ele é um dos muitos que fazem fila na paragem de autocarro. Uma mulher ainda jovem aproxima-se da fila e diz: “Vou para Lisboa. Vou agora de carro, sozinha, posso levar quatro pessoas. Só posso é levar quatro”. E quatro logo se acomodaram na oferta generosa: dois angolanos ainda jovens, o amigo Edgar e uma mulher de mais idade que não se conteve em louvor do, palavras dela, “grande milagre” que Deus lhe fizera, “logo pela manhã”.
Os angolanos devem ter concordado com uma qualquer expressão do género “está-se bem”, pouco falariam, aliás, durante a viagem, mas, nesse pouco, mostravam uma gratidão com economia de meios verbais, ainda assim festiva. Iam trabalhar na fábrica da Padaria, em Marvila. Àquela hora, a fome ensonada, não lhes foge o pensamento para a ideia que cresceu à boleia daquele poema de Brecht, a ideia de que “como é necessário o pão diário /é necessária a justiça diária”. Vão, pois, gratos e leves, passando levemente pelas brasas, está-se bem.
A jovem que os transporta, uma cabo-verdiana que vai para Sintra, sugere deixá-los no Areeiro, todos acham muito bem, não é longe do metro da Bela Vista, diz alguém, cada qual se amanhará, já foi uma sorte, uma bênção ou, no dizer da mulher mais antiga, um milagre que Deus fez logo pela manhã, já foi tão generosa a jovem a quem nada pediram e que nada sugeriu que com ela partilhassem na despesa da viagem, ora essa, muito obrigado.
Mas, conta o meu amigo Edgar, ali estacionada no Areeiro, para que se apeassem, ligou subitamente o pisca da esquerda, o de retomar caminho, deu meia-volta e disse: “Eu não consigo”. E foi deixá-los na estação mais próxima da fábrica da Padaria, “o povo necessita de pão diário / de justiça bastante e saudável”.
O meu amigo Edgar, ainda atónito, ainda comovido, conta isto que aconteceu assim, sem mais, com este tanto, e mantém um sorriso que parece perguntar ainda “quem prepara o outro pão?”