Não sabemos, não poderemos saber, o tanto que pode um poeta, o modo como o olhar do poeta consegue trespassar os muros, ainda mais os invisíveis. Os indizíveis.
Tantas vezes, as fraquezas do poeta são a sua grandeza. O grande João Gesta, ele próprio poeta, programador cultural, provocador e guardador de poetas, escreveu certa vez “com uma faca entalada no rim solteiro”. Podemos imaginar a musa sobre o muro ou enunciar outro desiderato, há momentos em que o poeta usa sem pudor os superpoderes. “Por ti”, garante um verso do Gesta, “eu estacionava o triciclo do Kropotkine à porta do Pérola Negra”. É no poema em que o vento não leva as promessas. Escutai a última: “Por ti / eu construía uma barraca apalaçada nas margens do poema/ Assim me parece o destino poético: a recibos verdes”.
Há uns anos tive a felicidade de ser convidado por João Gesta para uma conversa sobre anjos com o poeta Jorge Sousa Braga. No palco do Campo Alegre belas criaturas de asas feridas maquilhavam-se com pó de estrelas, enquanto o poeta apresentava anjos caídos de outras línguas. O poeta guardador de anjos.
Muitas luas antes, eramos todos tão jovens, Jorge Sousa Braga apresentou-nos um plano para salvar Veneza. Entretanto explicou-nos que não foi enxofre o que caiu sobre Sodoma, mas pólen. São tramados, os poetas, fazem perguntas a que só eles ousariam responder, pois escapam ao bom senso e à ciência. Escutai esta: “Haverá alguma cidade que resista a uma tempestade de pólen?”. O poeta continua nu, mas a pergunta, esta pergunta, pode ser feita em Gaza daqui a uma década. Daqui a duas décadas.
As cidades mais feridas no osso e na alma são como a flor cadáver que perfuma o novo livro de poemas de Jorge Sousa Braga. A Flor Cadáver e outros poemas. Também há anjos neste livro, lá no fim, depois de folheado o ciclo breve que vai da inflorescência à agonia da flor de Sumatra, com o seu cheiro a carne podre. Antes de nos apresentar os comedores de merda, o poeta dá-nos a cheirar a flor que talvez tenha tudo a ver connosco. É dele o sublinhado: “Em cada flor há um cadáver, em cada cadáver há uma flor”.
Os poemas breves de Jorge Sousa Braga, alguns deles com a estrutura de um haiku, almejam o toque de Midas, o capcioso e insinuante toque sobre a evidência correntemente omissa de que “cada um de nós produz durante a sua vida algumas toneladas de excrementos”. Queres outra evidência omissa? Alguns de outros nós, milhões de outros (particularmente na Índia) “continuam a defecar a céu aberto”.
Chegado à página 27, absorto perante a Cloaca Máxima, como se esperasse a inflorescência da flor cadáver, dou comigo a pensar que os noticiários deveriam ser, uma ou outra vez, editados por poetas. Reparai no verso que daria um rodapé certeiro: “O que é que os esgotos podem dizer de nós? Que estamos cada vez mais sós, cada vez mais sós”.
Mas o poeta parece escolher outro ofício similar e essa escolha é sustentada no poema O Guardador de Retretes: “É uma profissão em desuso/ Fornecia as chaves do WC/ e papel higiénico (por uma moeda) / e assegurava a limpeza/ das instalações sanitárias/ O mais humilde dos ofícios / Não conheço outro / de que tanto se aproxime / o ofício de poeta”.