A Biblioteca Municipal Álvaro de Campos, em Tavira, tem agendada para a primeira semana de Fevereiro uma oficina performativa intitulada “Roubei um livro na cabine e hoje vou ler”. A acção é coordenada pelo actor e encenador João Brito, do Lama Teatro, de Faro.
Do que se trata? Os participantes são desafiados a roubar um livro (esta é a exacta expressão usada pelos promotores). Com as palavras desse livro obrigam-se a responder à pergunta “Se tivéssemos meia hora em que todas as pessoas do mundo nos estão a escutar, o que diríamos?”. A operação tem os seus quês, supõe três planos de intervenção, três planos de leitura: a leitura para nós; ler com o outro, assim privilegiando a ideia de partilha; ler para os outros, os que estão na sala ou noutro lugar mais distante, usando telemóvel. As inscrições estão abertas.
O que me cativou na notícia, encontrada no Jornal do Algarve, foi a palavra roubar e o modo como, sem meias tintas, a iniciativa convive com uma espécie de transgressão implícita. Não porque associe o leitor ávido a uma espécie de salteador de estradas, nem sequer porque a palavra ganha, no noticiário corrente, a sua razoável dose de pestilência. Ainda que roubar um livro não seja comparável a roubar malas de livros, a palavra tem uma carga de odioso assinalável. Roubar um livro pode ser, contudo, o modo mais à mão de saciar uma fome de mundo. Mas a palavra intimida e provoca sobressalto.
Ladrões usam explosivos e roubam um capacete dourado valiosíssimo num museu dos Países Baixos. O mais explosivo da frase é a ideia de roubo.
Um deputado do Chega suspeito de roubar malas no aeroporto. É um acto não inscrito num código de comportamento minimamente aceitável.
Paul McCartney, entrevistado pela BBC lança um apelo: “Não deixem que a inteligência artificial roube os artistas”. Algo nos desafina por dentro e, ainda que não saibamos dar-lhe nome, é algo assustador”.
É de outra ordem o movimento de apropriação para que a Biblioteca Municipal Álvaro de Campos, em Tavira, desafia os seus actuais ou futuros leitores. O que aqui é proposto é que alguém retire de uma cabine, sem pedir licença, um livro entre muitos que lá estarão para isso, para serem levados. Podiam, a biblioteca e o dinamizador da oficina performativa ter utilizado outro verbo, surripiar, bifar, desviar, gamar? Podiam, mas não iriam tão desabridamente ao osso da intenção. Tomo que alguém, metendo a mão na cabine recheada de livros, retira o magnífico “Nómada”, de João Luís Barreto Guimarães. E que, folheando o livro roubado, ensaiando já a fase seguinte do desafio, encontra aqueles versos, “escrever poemas é como ir / roubar maçãs selvagens/ – Vais à espera da doçura, mas / surpreende-te a acidez”. Dou comigo a pensar que não anda longe o acto da leitura para que a iniciativa convoca os mais afoitos.
Entretanto, descobri uma palavra, um verbo sinónimo de roubar: gualdripar. E roubei-o, sem hesitar. Aqui o deixo. Gauldripemos as maçãs selvagens que formos encontrando.