Esta notícia do jornal O Minho sobre os mais recentes desmandos de Nandinho, o reincidente ladrão de bicicletas que também se apropriou de não se sabe quantas garrafas de vinho e indefinidos objectos de arte sacra em duas ruas de Braga, não nos remete para o tão tocante filme de Vittorio de Sica, dado o contexto.
Não estamos na Roma dos anos quarenta, há sinais de honradez que se perderam, entretanto, nos ventos de quase um século, mas você, Nandinho, poderia ter tido, vá lá, a decência, a subtileza, de uma vénia à toponímia. Um ladrão atento desenha com mais pinta a sua lenda futura.
Repare, Nandinho, você deitou mão a guiadores alheios, rapinou uma pomada talvez Donzelinho Tinto, talvez Baga ou Castelã, diabos o levem, nas ruas Maria Ondina Braga e Serge Reggiani (e isso, só isso, lhe agradeço, ter ficado a saber, por sua causa, que existe em Braga uma rua com o nome do grande cantor que me ajudou a descobrir melhor um tal Rimbaud, um tal Boris Vian, uns tantos mais). Fez, você, uns trocos. Foi, entretanto, apanhado, deu isso duas linhas de jornal, sem um frémito de glória.
Um ladrão, por mais que ande, na nossa fantasia, cozido às paredes, nas horas da coruja, não está dispensado de alguma vénia aos que mereceram o nome em placa de rua. Os nomes das ruas são sinais, por vezes sumptuosos, que nos levam por caminhos antes impensáveis.
Repare nisto: eram umas seis da manhã, o meu camarada Paulo Alves Guerra vinha pelo corredor com os pensamentos povoados de pautas para a emissão da Antena 2. “Bom dia, bom dia”, deteve-se o Paulo à porta da redacção e perguntou-me: “Vais fazer alguma coisa sobre o Drummond?”. O Drummond, o grande Carlos Drummond de Andrade, nasceu num longínquo 31 de Outubro, a pergunta fazia sentido. Eu respondi: “Vou fazer uma coisa sobre o Nandinho, ladrão de bicicletas sem glória, na rua Serge Reggiani, em Braga. Sabias que há uma rua Serge Reggiani, em Braga?” O Paulo também não sabia. E sabe você, Nandinho, que no poema Morte do Leiteiro, de Drummond, o poema da morte por engano, leiteiro confundido com ladrão pelo velho morador assustado com o ruído lá fora, tudo ocorre numa certa rua Namur? Sabe você quem foi o Namur associadoqa um episódio trágico num poema de A Rosa do Povo? Eu sempre presumi que possa ter sido um tal Namur Gopalla, especialista em arcanos, ocultista clínico, criador do primeiro tarot brasileiro. Mas é provável que não.
A fantasia é para aqui chamada, sim, caro Nandinho. Da próxima vez em que a sua deriva pela cidade o leve à rua Maria Ondina Braga, perpendicular à rua Serge Reggiani, pense nisto: se você tivesse lido A China Mora ao Lado, se se tivesse deleitado com a descrição de um certo jantar em Macau no fim do qual a senhora Tung apresentou a Ondina um proibidíssimo vinho de arroz, teria deixado em paz as castas Baga ou Castelã. E se tivesse lido O Jantar Chinês e Outros Contos talvez escutasse a campainha de um sam-lun-ché, a bicicleta com três rodas que maravilhou Ondina. E teria deixado sossegadas as bicicletas de Braga.
Deixo-lhe um dilema: o que quer que faça da sua vida, caro Nandinho, não descure a possibilidade de deixar o seu nome numa qualquer esquina, lúgubre ou vistosa. Fique sabendo que a rua da Estrela, em Lisboa, foi em tempos referida na toponímia como Travessa dos Ladrões. Mas já não é.